Às cinco da manhã, ligo o computador para ver as notícias do Brasil. Elas me afrontam ao proclamar a extensão de nossa miséria. Já há algum tempo as notícias e a toxicidade das redes sociais dão conta da monstruosa teia de extremismo que enreda o país.
Ponho a chaleira no fogo e algo como uma dor lancinante vai tomando conta deste meu coração saudoso. Sinto que a aparentemente infinita caixa de tragédias ainda não se esgotou. Continua a expelir seu arsenal de males. A feiúra desse conteúdo tenta sufocar minha titubeante esperança. Abraço-me aos filósofos, peço socorro a Karl Popper para não ceder ao pessimismo e, assim, contribuir para o cenário geral de desalento.
Contra os fios frágeis de meu otimismo lutam as redes sociais, os sites de notícias, as mensagens desencantadas dos amigos e tudo a que assisto de longe. Eles me narram com extraordinária clareza o cenário de caos, onde a violência campeia e os linchamentos – reais e virtuais – vão se tornando cada vez mais frequentes. Noto o quanto é fácil ceder ao populismo, lamento ver o debate dando lugar ao argumento raso ou à agressão. E espanto-me ao constatar com que facilidade valentões, boçais e gente grosseira seduzem os incautos.
Faço o chá preto – forte como o de George Orwell – enquanto continuo a ler as postagens dos amigos no Facebook. Reflexão, leitura e bom senso vagueiam, perdidos, entre modismos e atos teatrais. O espetáculo fascina, as hashtags e palavras da moda idem. Todo mundo é militante e está coberto de razão, além de ocupadíssimo salvando o mundo. Já não há espaço para os Luther Kings nos dias de hoje. Tem de ser de Malcom X em diante. A raiva ruge. É preciso ir à guerra. Moderação não serve para destruir o establishment (onde foi mesmo que vi isso antes?). A coisa tem que ser na base de destruição atômica, napalm e empalamento. E tome generalização tosca. Às favas toda lógica. Assim, seguimos babando ódio nos teclados, acreditando que vulgaridade é sinônimo de opinião forte ou simplesmente confundindo sinceridade com rispidez.
Já não basta a crítica severa: é necessário purpurina nas palavras ocas, o brilho falso de um mundo de pós-verdades. É de fato um universo peculiar esse em que vivo agora. Nele, imprensa golpista ou fake news são quase sempre o que desagrada a quem se vale dessas expressões. Examino, perplexa, gente defendendo abusos, reinventando a realidade, negando o óbvio e abraçando o sofisma.
Volto às notícias e me sirvo de mais uma xícara de chá preto para ajudar a superar o nó na garganta. Há coisas que minha mente acanhada demora a aceitar, embora eu compreenda que são fenômenos mundiais e recorrentes. Desvio os olhos da tela por um instante. Aguardo ansiosa que a rudeza da expressão ceda espaço para o bom debate e que seja restaurada a polidez na defesa das certezas que cada um carrega. Lá vem o Popper de novo a me lembrar o perigo das certezas substituírem a verdade. As certezas são abusadas: instalam-se sem cerimônia e dispensam investigação, checagem e reflexão. No nosso mundinho de surdos, nem como exercício filosófico se cogita estar equivocado. Errar já não é mais humano, meu caro Voltaire.
É inescapável pensar que a passionalidade e o comportamento agressivo aos poucos força os limites da civilidade. Os comentários de sites de notícias e redes sociais já saltaram para a vida real, tornando nosso país um local onde boas maneiras vão aos poucos escasseando. As certezas são “esfregadas na cara”. Palavrões, xingamentos e comportamentos abusivos são recebidos entre aplausos. E, paradoxalmente, tudo isso num país que fica de olhos marejados quando elogia a cortesia que impera em outras partes do mundo.
Eu disse “elogia”? Desculpe, tempo verbal errado. Leia “elogiava”. São cada vez mais raros os brasileiros que apreciam as delicadezas e os avanços civilizatórios. Bonito é vomitar na face alheia, sambar na cara da sociedade, apoiar quem “fala mesmo”, ser rude e usar uma enorme quantidade de rótulos desqualificadores para encerrar um debate sem precisar ter razão. Qualquer coisa que fuja a isso e o autor ganha um rótulo na testa: isentão. Quem inventou esse termo e o associou aos moderados deveria ganhar camarote no oitavo círculo do inferno de Dante, oitava bolgia. Tudo muito schopenhaueriano. Somos todos extremistas? Certamente não. E espero que nunca sejamos. Mas a bofetada matinal em forma de leitura ainda está ardendo – como recordação dolorosa de que algo muito grave está ocorrendo neste exato momento. Algo obscuro e pútrido.
Enquanto bebo o último gole de chá, o velho Aristóteles espia sobre o meu ombro e vê algumas outras ideias vergonhosas sendo alegremente compartilhadas no Facebook. Sua simples lembrança me inspira a interferir, escolher a retórica, desmontar o argumento torto e buscar a persuasão. Suspiro de novo. Ah, velho grego, você sabe que para isso é necessário que o outro não esteja encerrado na muralha das próprias certezas. Derrubar o paredão demanda tempo que já não tenho, educação (no sentido pleno) e artimanhas socráticas – que não domino, aliás. E eu tenho um livro para terminar.
Lá no fundo da caixa, a esperança luta bravamente para sair. Mas tenho um palpite que, antes que ela escape da prisão, muitas novas mazelas virão à luz. Será assim até que o dolorido cansaço nos vença ou até que a maturidade nos aponte um outro caminho? Mistério.
No Spotify, Mighty Sam McClain canta I’m Tired of These Blues.