Novembro de 1964. Eduardo a esperava no altar da igreja de Santa Terezinha. As mãos estavam úmidas, a boca seca. Ouvia o descompasso do coração. Eis que ela surge: uma lua de vinte anos, com um rastro de frescor e de leveza, entre nuvens de seda e tule branco.
Havia sido um longo caminho até aquele altar. Eduardo era o melhor amigo de Zezito. Tinham vinte anos de idade quando Zara nasceu. Levava aos bailes a filha do amigo, vendo crescer com ela um sentimento novo. Uma noite, quando Zara tinha 19 anos, tomou a mão dela e falou de um amor que já não cabia quieto no peito dele. Tremia um pouco, mas disse palavras tão lindas, tão doces, que ela o amou também.
Agora estavam ali, aos pés da Santinha, fazendo promessas.
– Na saúde e na doença. Na alegria e na tristeza, até que a morte os separe.
Não eram palavras vãs. Eduardo havia antecipado a ela que a vida seria de sacrifícios. Ela deixaria o conforto da vida paulistana para morar “no meio do nada”, a 600 quilômetros da capital. A mãe se inquietara: na fazenda Pirahy não havia telefone, água encanada, energia elétrica. Zara encarou o desafio: não era feita de vidro.
No carro, após o casamento, ele tomou as mãos dela, tão finas. Tateou os bolsos e lhe pôs no dedo um anel. Um brilhante que, como a noiva, era pedra rara, beleza difícil de quebrar.
Semanas depois, sacolejavam pela estrada sem asfalto num Jipe Willys. A capota de vinil esquentava e os vidros se cobriam de poeira. Chegaram à fazenda, ainda terra bruta. Ela desceu, senhora de si. Ali, aprenderia que o seu era um homem da terra, feito para o plantio, enfermeiro e senhor das flores de algodão.
Eduardo passava o dia no campo, cercado de meeiros nordestinos e imigrantes italianos, semeando, colhendo, de olhos postos da lavoura. Duas vezes por dia, retornavam todos com a pele crestada pelo sol, roupa suja de terra roxa, camisa empapada de suor e um estômago rugindo como fera.
Aos vinte anos ela comandava a casa e a cozinha, imperturbável. Vestida de caqui ou marrom, para disfarçar a poeira, cozinhava pratos que ele amava e ela jamais comeria: dobradinha, bife de fígado. Coisas do amor. Havia lá suas compensações. Quem conseguiria traduzir aqueles pores de sol, a serra azulando no horizonte longínquo e a placidez das águas do Paranapanema? Que beleza superaria o campo coberto de dourada flor ou a brancura da plantação pronta para a colheita, como se a neve se deitasse sobre a paisagem de São Paulo? Zara o via caminhar entre as plantas, acariciando com as pontas dos dedos o algodão recém-nascido. Nunca mais pôde ver o óleo ou a maciez das fibras sem pensar que haviam sido regados pelas gotas que brotavam da testa de Eduardo e de tantos outros homens.
Vieram as crianças. Três. Cristiana, Eduardo e Gustavo. Saracoteavam de pé descalço, bulindo por toda parte, bebendo leite na caneca, direto das tetas das vacas. Eram felizes, mas estudar era preciso. Mudaram-se para São Paulo e dividiram a vida entre cidade e fazenda.
Houve tantas semeaduras, tantas colheitas. Idas e vindas de sementes escuras, flores de ouro, alvos flocos carregados pelo ar. Até que veio a tempestade naquele 2011.
Aos 86 anos, Eduardo caminhava na lavoura com os filhos quando sentiu o corpo fraquejando, as pernas desobedientes. Correria, aflição, medo. Cardiologista, esteira? Tudo certo no velho coração. Por que então a lavoura do corpo parecia ameaçada por invisível praga? No interior todos sabem: o melhor médico é a estrada para São Paulo. No hospital, se soube: leucemia mielóide aguda. Era o nome científico daquilo que Eduardo e Zara sabiam que, na linguagem simples dos homens, se chamava simplesmente morte. Mais de 60% do sangue eram blastos. Ela espreitava.
Dr. Nelson não recomendava quimioterapia. Idade avançada, fraqueza que já tomava conta de Eduardo. Transplante de medula? Não para pacientes nessa idade. Restou um novo tratamento que somente dois pacientes tinham feito no Brasil. Um tivera êxito, o outro não. Eduardo encarou o desafio: lutaria por sua plantação.
“Desligaram-lhe” a medula por 20 dias. A expectativa era que, quando voltasse a funcionar, tudo se resolvesse. Não deu certo. Quando a medula voltou a trabalhar, mais de 90% do sangue eram blastos. Eduardo não se renderia à praga: tentou a quimioterapia. Não era homem de rendição sem luta. Vieram as sessões: uma, duas, três, seis, dez, vinte, perdeu a conta. Oito meses depois, foi pra casa. Vitorioso.
Um ano se passou antes que tudo recomeçasse. Acampamento no hospital por seis meses, quimioterapia, nova remissão total, nova alta, casa de novo. Comemoraram o aniversário dele na praia, com os filhos e os netos tostando na areia. E enquanto espiavam o sol se esconder no horizonte, ele segurou a mão da lua que surgia.
Passado outro ano, a sombra voltou – pela terceira vez. O hospital era agora a segunda casa de Zara e dos filhos. As bodas de ouro foram comemoradas com festa, entre médicos, enfermeiros e copeiras. Cinquenta anos. Como pôde ser tão rápido, meu Deus?Todos sabiam: a doença vencia agora. De vez em quando escapavam para algum restaurante. Viram até o Dr. Nelson atacando de roqueiro num bar de São Paulo, com os outros médicos. Os “Desafinados do Rock” se esforçavam para fazer jus ao nome da banda. Desafinados profissionais, veros discípulos de Tom Jobim, mas Eduardo riu e gostou.
No dia seguinte teve um infarto. O tratamento do velho coração requeria parar o combate à leucemia. Sem remédios, surgiram as dores – cada vez mais fortes. Após quatro anos, Eduardo capitulou: finalmente se queixou. Nem a morfina resolvia. Foi sedado num domingo de manhã.
No dia seguinte, em meio à visita da equipe médica, abriu os olhos, retirou a máscara e dirigiu-se ao Dr. Nelson: “Agradeço muito pelo que o senhor e sua equipe fizeram por mim todo esse tempo. Por favor, transmita meu agradecimento a todos”. E voltou a dormir, com o coração em paz.
Como superou a sedação foi um mistério. Horas depois, acordou novamente. Seus olhos encontraram os de Zara: “Olha que moçada bonita estamos deixando. Estou feliz por isso”. Ainda sorria ao mergulhar no mundo da sedação.
Terça feira, às 16h, as pálpebras se abriram devagar. O azul dos olhos de Eduardo desta vez tinha um brilho diferente, de saudade antecipada. Chamou Zara com a voz grave de sempre.
– Me abrace. Tenho medo de te perder, mas estou indo embora.
Os braços de Zara o cercaram, naquele conforto doce, familiar e único. Aconchegou-se a ela e adormeceu, vendo a lua cercada de nuvens de tule e seda.
Linda história. …grata!
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Que historia mais linda .A Zara era linda !Recordo qdo casou
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Que lindo texto, de fato emociona.
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