Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, ocorreu-me uma solução para os graves problemas da polarização no Brasil. Há dias andava eu a pensar numa fórmula mágica que unisse as duas grandes torcidas nacionais que se engalfinhavam para espanto do pessoal do Isentões Sport Club e da União dos Moderados Impassíveis do Zen-Budismo Raiz.
Nada apontava para a possibilidade dos Míticos Perfexy de Realengo e Região virem a fazer as pazes com os Canhotinhos da Vila Madalena, Leblon e Campi. Ninguém aguentava mais tanta briga.
Mas em meio àquele passo, meio bêbado meio equilibrista, fiat lux! A solução que uniria o grande balaio brilhou na TV de tela plana: Capitu. Só ela, a Capitolina dos famosos olhos de ressaca, oblíquos e de cigana, poderia acalmar os corações descompassados.
Com as mãos úmidas de suor, digitei a pergunta redentora no Facebook: “Afinal, Capitu traiu ou não?”.
Milagre, festa no céu, hosanas na terra. Por exatas sete horas ninguém brigou por causa de política, religião, futebol e passas no arroz. Pelo menos não o fizeram na minha timeline. Do restante da vasta web, caro leitor, nada posso dizer. Mas meu naco de paz me foi suficiente.
O debate sobre D. Casmurro rendeu. Houve quem dissesse ter absoluta certeza da traição, houve quem cravasse na inocência da Capitolina. E disso davam garantias, como se fossem amigos de infância do personagem.
Meus favoritos foram os que se arvoraram de advogados de defesa da suposta traidora. Até a justificaram! Capitu foi tratada como vítima e houve quem dissesse que a opressão de Bentinho a deixou vulnerável a Escobar (que estaria à espreita).
Uma unanimidade: Bentinho merecia ser traído. Por ser louco (!), por ser ciumento, por ser insuportável, chato, idiota, mala, paranóico e sem sal. Ninguém o poupou: se foi traído, mereceu; se não foi, deveria ter sido.
Houve, ainda, quem filosofasse sobre a angústia da dúvida, a cegueira causada pelo ciúme e a liberdade plena (ninguém é de ninguém!).
E houve quem especulasse com gosto (“ela traiu em pensamento!”) e quem se espelhasse (“ah, mas naquela situação eu também trairia”).
Quase ninguém se deu conta de que todas essas reações dão testemunho do triunfo da boa literatura e do talento de Machado de Assis. E não é porque ele nos levou a opinar e nos envolver num debate literário, não! A questão é muito mais profunda. Vamos a ela.
Você notou que toda a história foi contada sob o ponto de vista de Bentinho? Tudo o que sabemos de Capitu, de Escobar, de cada fato, expressão e sentimento no romance, nos foi narrado por ele. Ninguém (leitor ou personagem) viu Ezequiel, o filho de Capitu, e pôde compará-lo, adulto, a Escobar. Seriam de fato parecidos? Ou a mente transtornada de Bentinho nos convenceu disto?
Bentinho poderia ter sido movido por ciúme, obsessão, loucura, mesquinharia. Nós, os leitores, o escutamos atentos, acreditando em suas palavras, tomando partido.
A única possível conclusão para o romance é que Bentinho nos contou uma história – que pode nem ter existido ou ter sido bastante diferente. Tudo o mais é fruto de nossa imaginação.
Como um mestre das marionetes, o escritor puxa os cordões e nos faz dançar ao seu bel-prazer.
Por isso, mais do que a polêmica em torno do assunto adultério, é forçoso se louvar a perícia do velho bruxo.
A traição foi cortina de fumaça para que Machado construísse um personagem complexo – o único a se revelar por inteiro no romance. O efeito é bárbaro. Repito: tudo o que se pensa de Capitu está profundamente ligado não à personalidade dela, mas à de Bentinho. Nossas reações emocionais à possibilidade de um adultério se baseiam tão-somente nos sentimentos que Bentinho nos desperta e nas informações que dá sobre si mesmo e os outros.
Com absoluto domínio do texto, no auge de sua maturidade literária, Machado comanda as palavras. A narrativa é ágil, cativante, fluida. Consegue ser quase leve, mesmo ao falar de sentimentos densos, de ódios mal disfarçados, de tentativas de homicídio. Ele dialoga com o leitor, levando-o aonde queira, brincando com seus sentimentos, rindo-se dele.
Em resumo, ontem, mestre Machado fez de novo seus milagres. O primeiro, que ocorre há mais de um século, consiste em comandar as reações dos leitores. Todas elas fruto da composição primorosa de um único personagem.
O segundo milagre de Machado de Assis foi conseguir, por várias horas, desviar do debate político incendiário a atenção de uma nação que desaprendeu a arte do diálogo.
Não é pouco para quem está morto há 111 anos.
Deveriam canonizá-lo.
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Imagem: O Importuno, de Almeida Júnior. Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Olá Sonia, concordo quando diz que o escritor é um “bruxo” e o leitor marionetes.
Quando escrevo em meu blog,minha intenção é apenas libertar sentimentos. No entanto, a imaginação dos leitores trazem tantos sentidos,nas respectivas interpretações que chegam a me me surpreender.
Agora sobre o que compreendi de Dom Casmurro: numa sociedade patriarcal,Bentinho cresceu criado e mimado pela mãe. Além de ouvir o tempo todo que era a cara de seu pai. Aí, inconscientemente,criou a ideia de que seu filho teria de se parecer com ele. Mais que isso,ser sua xerox.
O enredo abre tantas possibilidades de interpretação.
Acredito que ser o “filho da mamãe”, atrapalhou e muito suas relações com mulheres.
O enredo mostra que ele foi devoto a sua amada desde a infância,mas não sabia lidar com seus instintos ao ver outras mulheres. Capitu (filha única), moça,de família humilde,sabia ser dona de casa;cuidar das finanças,tinha inúmeras qualidades. Isso de algum modo o incomodava. Ela era naturalmente extrovertida. Tinha qualidades de uma mulher inteligente,mesmo na sua simplicidade.
Daí criou a ilusão de está sendo traído pelas pessoas que mais amou. Quando na verdade,ele sentia desejo pela esposa de seu grande amigo.
Tirou Capitu do Brasil para fugir da vergonha que sentia de si mesmo. Não sabia ser amigo,homem,marido nem pai. Também não estava disposto a aprender ser alguém melhor.
Maravilhoso seu poste.
Abraços
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