_ Tia, me compra uma sandália havaiana aí no supermercado?

O rosto oval sorri. Moreno, magrelo, cabelo duro de poeira. As roupas tem pequenos buracos.  Uma camiseta cinzenta, uma bermuda cor-de-burro-quando-foge. É um garoto bonito, de olhos vivazes e dentes branquinhos.

Puxo conversa.

_ Por que você está aqui pedindo?

_ Preciso de uma sandália para ir pra escola. 

_  Sabe que para gente como eu e você só tem uma chance, né? Estudar. Você está mesmo na escola?

_ Estou sim. 

Ele diz com orgulho o nome completo da escola, no Jardim Ingá, uma área pobre na periferia de Brasília. Chama-se Juan e tem dez anos. Enquanto falamos, John, o irmão dele, ataca com voracidade um pedaço de pão que um casal lhe estende. Tem nove anos e é mais magro e calado que Juan. Suas orelhas de abano chamam a atenção quando se olha para ele.

Conto sobre todo mundo que superou dificuldades pelo estudo. Juan ouve com atenção, olhos fixos em mim. Estamos sentados na escada do supermercado e me sinto muito bem comigo mesma: quase Madre Tereza salvando a Índia. Entre as muitas histórias, a certa altura falo de Machado de Assis, que vendia bolinhos na rua e era filho de lavadeira. Ele me interrompe:

_ Esse escritor é aquele que tem uma estátua lá no Rio de Janeiro? Tirei foto com ele. 

_Você já foi ao Rio de Janeiro?

Fui sim. O pessoal da ONG lá de perto de casa me levou. Eles premiam as crianças que tiram as melhores notas na escola. Eu tirei! Conheci o corcovado, o pão de açúcar e as praias…

Mas então você já estuda muito!

Juan baixa os olhos e sorri, tímido.

Madre Tereza acaba de ser salva pelo indiano.

_ Vou fazer minhas compras. Você precisa de algo mais? 

Hesita um pouco.

_ Leite. Minha irmã está com um furúnculo e muito enjoadinha. Ela vai chorar a noite toda. Se tomar leite, ela dorme.

_ E para você?

_ Não precisa nada, não, tia. Traz só o leite. Olha, a minha irmã está ali, com a minha mãe.

Compro o leite, a sandália e os entrego à mãe. Ela agradece. Seu nome é G. Muito magra, sorridente, conta da alegria de, finalmente, ter uma filha. Aponta Ana Vitória, de uns dois anos, que brinca dentro de um carrinho de supermercado forrado por um pedaço de flanela vermelha.

Fico feliz quando ela me chama de mãe. É a menina que eu não tive.

Descubro que a garotinha rechonchuda, de cachinhos e olhos bem escuros, é, na verdade, sobrinha. Filha da irmã, que está presa na penitenciária da Papuda.

Conversamos. Ela fala com orgulho do desempenho de Juan na escola. E conta dos gêmeos, os mais velhos, “que são muito altos”. Aos 17 anos, um deles está na Bahia e sonha em ser jogador de futebol. Foi fazer um teste num clube grande de Salvador. Telefonou para o pessoal da ONG e falou com a mãe. Reclamou do calor e disse que, quando for famoso no estrangeiro, vai ajudar a ela, aos irmãos e a um vizinho.

As crianças riem alto. Durante a brincadeira, a garotinha bate a boca no carrinho e chora. G. a põe no colo. Ela pergunta a Juan de qual lado é o furúnculo, a fim de não apertar o local dolorido. O menino cai na risada: _Você sempre esquece! É aqui, ó: do lado direito.

Todos riem da memória fraca de G. A mãe conta que a casa está mais alegre porque a sobrinha de 16 anos tem uma bebezinha de quatro meses e foi morar com ela. A moça não tem onde ficar porque a mãe dela, soropositiva, se recusa a tomar os remédios e “só está esperando a hora”.

Está na sua casa? Junto com as crianças?

_ Não, está aí pela L-3. Ela quer morrer na rua. Nem levanta mais. Está só pele e osso.

John – cujo nome foi escolhido pelo padrinho, que é cozinheiro na ONG – está rindo com Juan e a irmãzinha. A mãe olha para eles e sorri também.

Prometo visitá-los em breve. Juan se apressa e escreve, com uma letra redonda, o endereço no papel. A ONG, na verdade, é uma instituição religiosa em cuja creche fica a caçula da família e os outros têm aulas de reforço enquanto a mãe procura trabalho. Depois de vários meses desempregada, decidiu pedir ajuda na porta do supermercado. Juan me indica precisamente o local onde mora, acrescentando que a casa, construída em mutirão numa parte do terreno da “ONG”, é rosa e azul porque não teve tinta suficiente para pintar tudo da mesma cor.

_ Todos os vizinhos ajudaram a  pintar a nossa casa. Foi muito legal.

_Você gosta de lá?

_ Adoro!

Digo muito séria.

_ Vou querer saber apenas de duas coisas quando for te visitar. 

Ele cai na risada.

_ Eu sei: se estudei e se escovei os dentes antes de dormir.

_ Sim. Só isso importa agora.

Despeço-me de todos. Um ar quente me envolve na noite de Brasília.

Quase na esquina, olho para trás. Juan acena. Dou uma piscadela para ele.

Enquanto atravesso a rua, penso neste quadro de Portinari que ilustra a crônica.

***

Imagem: meninos Brincando. Cândido Portinari