Não quero a tua esplêndida gaiola! Pois nenhuma riqueza me consola de haver perdido aquilo que perdi…

Olavo Bilac (Pássaro cativo)

A mente livre me fascina – admito. Tenho um prazer quase voluptuoso ao pensar nesse território único onde posso ser legislativo, executivo, judiciário e, por vezes, até o poder moderador.

Nele, subverto regras, rio de mim mesma, crio sistemas e escrevo a minha própria constituição. Nas estantes invisíveis de minha mente vivem minha família, professores, amigos, experiências e todos os autores que li. Poetas e filósofos, economistas e oradores da antiguidade por vezes se engalfinham e lutam para se sobrepor.

Temos ótimos saraus, nos quais as ideias se chocam. Filósofos discutem uns com os outros. Buda, Jesus Cristo e Krishna já foram vistos debatendo com Sam Harris e Dawkins. E Shakespeare já bebeu ótimos vinhos com os russos.

Mas, no fim de tudo, esses amigos – que me ajudaram a compor quem eu sou e o que penso – cedem espaço para que eu escolha. Ali, o livre arbítrio é lei.

Por isso me causa um certo pesar assistir a esses modernos espetáculos de aprisionamento das ideias. Um desfile de escravos que se arrastam pela vida. Com o espírito preso à noção de que seus donos são magnânimos, recebem, com olhos brilhantes e peito em festa, os pedaços de pão amanhecido que algum poderoso lhes atira. Desconhecem o sabor do pão fresco, recém-saído do forno, e por isso se sentem privilegiados em roer o naco mofado.

Assisto diariamente à necessidade que muitos têm de seguir um guru que lhes determine roteiros de vida e pensamento. Entendo que optam por um caminho confortável. Nessa trilha ninguém se arrisca ao salto, não se mergulha nas águas agitadas da liberdade nem se está autorizado a questionar a legitimidade de seus heróis.

Entram voluntariamente em jaulas, intoxicados por ideias que não são suas, e ali permanecem. Abrem mão do autodomínio, dependem da aprovação de seu grupo, mas se julgam livres. Valem-se de toda sorte de desculpas para se esquivar de tomar uma posição independente. Suplicam por uma bússola que lhes entregue um roteiro pronto.

Engolem o que lhes oferecem; tudo lhes vêm pronto e mastigado. Refletir é supérfluo. Duvidar? Pecado mortal. Nesse grande embate político que assola o país, converteram-se em chicote no lombo dos que pensam diferente. E como são rápidos em colar rótulos na testa de quem diverge!

Parte deles é formada por pessoas muito idealistas, com enorme vontade de mudar o mundo e combater as desigualdades sociais. Na juventude, encontraram professores, livros e políticos que lhes disseram que esse era um sonho possível; que uma sociedade justa, onde todos se fartariam de leite e mel, era absolutamente factível. Jamais cogitaram que a realidade pudesse ser mais complexa do que sonha a sua filosofia; nunca ousaram verificar, na prática, o que aconteceu com os países que implantaram tais ideologias.

Permaneceram no sonho, esquecidos que não há refeições grátis e que os revolucionários que eles idolatram também são seres humanos, encharcados de desejos e vaidades, e, portanto, muito vulneráveis aos apelos do poder e – por que não admitir – daquele vil metal que parecem condenar. Faltou-lhes a experiência de George Orwell, que mergulhou profundamente no sonho e, ao emergir, traduziu o fim da inocência em seu monumental 1984.

Orwell, ele mesmo socialista, porém com espírito atento ao que se passava fora do mundo das idéias, detectou o que acontecia na Rússia de Stalin em sua época. Observou a manipulação das mentes mais frágeis, os métodos de convencimento de massas e a postura dos dirigentes do partido que pregavam pobreza e austeridade enquanto se refastelavam em luxo e mordomias. Também identificou a lavagem cerebral que atingia as novas gerações, transformando-as em instrumento dócil do grande comandante, e pôs tudo isso em uma obra que deveria ser obrigatória nas escolas quando se estudasse a história contemporânea: A Revolução dos Bichos.

Extremamente sensível à dor alheia e à exploração desumana dos trabalhadores da Europa em sua época, Orwell não se limitou a debates intelectuais. Ainda na juventude fez sua imersão na pobreza: encarou quinze horas de trabalho brutal em Paris, entre ratazanas, bêbados e a tortura da fome; experimentou a mendicância e os albergues degradantes de Londres. Morreu com o ideal cravado no coração, mas jamais deixou de perceber que alguns que lhe partilhavam os sonhos foram corrompidos pela ambição humana que lhes transformou o ideal inicial em instrumento de benesses pessoais. E desligou-se desses despedaçadores de sonhos. Fez mais: desnudou-os em suas duas obras máximas.

Uma outra parte é formada por pessoas igualmente idealistas, embora se creiam libertas do fanatismo que assola os primeiros. São alvo de outros mestres e outras ideias. Foram seduzidos por argumentações diferentes e desenvolveram fortes barreiras que os tornaram impermeáveis ao contraditório. Também seguem com suas certezas, sem notar que são manipulados pela inteligência, pelo ego monumental de seus gurus ou pelos próprios desejos e pensamentos que cultivaram.

Estes me lembram a razão pela qual guardo na alma a pensadora Hannah Arendt, judia alemã que poderia ter optado pela trilha fácil de escrever o óbvio sobre o horror do Nazismo. Mulher admirável, preferiu expor a própria carne ao furor do julgamento coletivo ao revelar nada além da verdade que testemunhou no memorável julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. E o mundo, assim, descobriu a banalidade do mal.

Arendt, Orwell e tantos outros vacinam almas contra as armadilhas sedutoras do maniqueísmo e da adesão incondicional às teses que pululam pelo vasto mundo da Internet. Suas obras destacam, no cenário das ideias políticas, o elemento humano – com suas mesquinhas ambições e auto-ilusão.

Também eu, ao longo da vida, já acreditei em ideais e pessoas que posteriormente se mostraram indignos. Entendo que isso faz parte do aprendizado da existência.

Entretanto, como há gente que jamais se curva às evidências! Seguem algemados até hoje. Não importa quanta sujeira emerja, quanta corrupção surja, quanta estupidez seja pronunciada, quanto ódio seja espalhado – estão lá, firmes, escudados em múltiplas desculpas, adulterando o significado das palavras, cegos ao óbvio. Parecem perdidos. Não conseguem dar o salto em direção a algo novo.

Lamento pelos que agem assim, mas deixo-os viver suas escolhas. Compreendo que essa é uma questão pessoal e que o máximo que posso fazer é observar. O papel de palmatória do mundo jamais me coube.

Ainda assim, entendo como muito grave a atitude dos que se acham no direito de patrulhar o pensamento alheio, ditar normas, cercear a opinião dos outros e a eles impor a sua. Ou pior: agredir sem pejo ou limite. Aí nasce o perigoso ódio que se nutre atualmente da carne brasileira.

Tento buscar a gênese desse sentimento mesquinho, rançoso, que escraviza o país. Em vão. Não decifro essa gente imersa em si mesma, que consome somente o que lhe dizem os semelhantes e, justamente por isso, segue inebriada disseminando suas certezas, convicta de que o papel de herói lhe cabe.

De minha parte, busco observar detidamente os cenários a fim de formar uma opinião embasada e abrir caminho nesse nevoeiro de informações que a política e as redes sociais nos envolvem. E sempre questiono – inclusive a mim mesma, pois não há coisinha mais enganadora do que a própria mente. Detectado erro, paciência, é voltar duas casas, pedir desculpas e se sentir feliz: um novo aprendizado foi incluído no HD mental.

Na longa caminhada, a dúvida segue à minha frente, portando a lanterna. Sigo atenta à voz dos filósofos e escritores que, embora não mais caminhem ou respirem, vivem em mim, a apontar caminhos de liberdade para esta minha alma indomável e curiosa.

Alma indomável. Tomo emprestada a expressão do poeta britânico William Ernest Henley, autor de Invictus, o poema que você lê abaixo.

Indomável parece ser uma ótima palavra em cenários nos quais todo mundo tem certezas demais e uma vontade secreta de colonizar a alma alheia.

Invictus

Dentro da noite que me cobre

Negra como uma cova de lado a lado

Agradeço a quaisquer deuses que existirem

por minha alma indomável

Sob a garra cruel das circunstâncias

não tenho tremido ou gritado alto

Sob os duros golpes do acaso

Minha cabeça sangra, mas não se curva

Para além deste lugar de ira e lágrimas,

Ergue-se apenas o horror da sombra.

E mesmo a ameaça dos anos

Me encontra e me encontrará sem medo.

Não importa quão estreito o portão

Quão carregada de castigo a sentença,

Eu sou o senhor do meu destino

Eu sou o capitão da minha alma.

****

Invictus

Out of the night that covers me, 
      Black as the pit from pole to pole, 
I thank whatever gods may be 
      For my unconquerable soul. 

In the fell clutch of circumstance 
      I have not winced nor cried aloud. 
Under the bludgeonings of chance 
      My head is bloody, but unbowed. 

Beyond this place of wrath and tears 
      Looms but the Horror of the shade, 
And yet the menace of the years 
      Finds and shall find me unafraid. 

It matters not how strait the gate, 
      How charged with punishments the scroll, 
I am the master of my fate, 
      I am the captain of my soul. 

Ilustração: René Magritte. O Falso Espelho.