Na imensidão do cosmos, caminhou como se dançasse. Em torno dele demos voltas graciosas, novos passos de um eterno minueto. Mozart e Kepler juntos no compasso.

Aqui –  onde florescem ipês e palmeiras, bordos e flamboyants – a vida seguiu entre sustos, risos mansos, temor e esperança. Ciclos de vida a se repetir.

Houve quem nascesse e inundasse de luz os olhos de quem aguardava. Houve quem partisse, abrindo abismos de saudade nos corações que ficaram.

Houve quem se desse a outros e quem buscasse a si mesmo.

Houve quem comemorasse vitórias e quem derramasse sentidas lágrimas, temeroso do futuro.

Um ano a mais. Ou a menos.

Um ano em que nos desafiamos, que arriscamos, tememos e suamos. A mão tremeu de dúvida na hora decisiva, diante da assinatura, do gesto de perdão, da esmola, do divórcio. Engolimos em seco perante as derrotas e nos regozijamos por supostos triunfos em arenas humanas raras vezes importantes.

O fim do ano chega abrindo portas à reflexão. Cada final ou recomeço de ciclo enseja balanços pessoais e coletivos. Hora de olhar no espelho e, simultaneamente, contemplar o complexo tecido da humanidade, do qual somos fibra pequenina.

Olhamos para trás e, embora busquemos a memória das glórias, contemplamos também as angústias afogando Ofélias, Hamlets ajoelhados diante de um crânio ressecado e a morte ali, onipresente, espiando com seus olhos de coruja. Surge a pergunta inevitável: quanto tempo teremos?

Ah, as perguntas indesejadas e suas mensagens carregadas de presságios. Quem as desejará? Raros entre nós as buscarão de bom grado. Entre inquietudes e copos de cólera, paixões arrebatadoras e sonhos de açúcar, a maioria seguirá avessa às indagações filosóficas.

É natural limitar-se ao humano desejo de que o próximo ciclo nos seja ameno, feito apenas de um fio de mel a correr sobre a brancura do leite. 

Terno e necessário auto engano. A razão sorri, compreensiva, lembrando que a vida é igualmente dividida entre perdas e vitórias, afagos e apedrejamentos; mas que, nos domínios oníricos do coração, não há espaço para reconhecer que a bruma virá e cinzas poderão nos cobrir a cabeça. Não, não. Entre os desejos de fim de ano estarão somente as doçuras, plumas de pássaros, brisas de primavera.

Discretamente varreremos para baixo de um tapete puído a sombra que espreita, a vontade de comer o coração alheio, lambendo os dedos.

Esconderemos em velhos armários a ânsia de nos impor, o desejo de pôr o outro de joelhos. Ocultaremos, por fugazes instantes, a agonia e o destempero que nos atormentam. Manchas de sangue em tronos e cadeiras humildes, ira, cobiça, mãos de Lady Macbeth, bruxas de um olho só? Tudo coberto por brancos tecidos.

Temerosos do que a caixa de Pandora nos reserva, recolheremos a esperança nas mãos trêmulas e a poremos no trono dos votos. Desejaremos Bach e Vivaldi, músicas ecoando pelas catedrais, violinos e cellos. Suspiraremos pelo mundo de Oberon e Titânia, com imortal graça, cortejos de fadas e leitos perfumados por lírios. E por um breve instante seremos flores de lótus, a contemplar nossas pétalas de veludo sem mácula, ignorando o lodo que faz parte do cenário.

Nem poderia ser diferente. É nosso espaço de respiro anual. Momento em que aflora algo divino a nos impulsionar num flerte com a brandura que deveria ser cotidiana. A voz interna sussurra conselhos: aproveite o tempo presente, enquanto os amados respiram, o corpo é saudável e se pode ser feliz.

No próximo ano, o dourado continuará a bailar no céu, fazendo brotar flores sobre túmulos, iluminando cavernas, crestando peles. Haverá em nós o mesmo delírio que entorpece, a racionalidade que equilibra, sonhos e paixões, beijos e choros sentidos. Tudo junto, pulsando na alma, ardendo em febre, gelando em arrepio e compondo a existência.

Ah, rica vida, de tormentos e de risos, seja louvada sempre.

Estaremos aqui até o novo ciclo? Não importa.

Carpe diem.

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* Analema, termo que em astronomia designa o grafo das diferentes posições do Sol, marcadas na mesma hora, ao longo de dias sucessivos durante um ano.