“Como ave me caçam os que, sem causa, são meus inimigos.
Cortaram-me a vida na masmorra, e lançaram pedras sobre mim.
águas correram sobre a minha cabeça; eu disse: Estou cortado”.
Lamentações 3: 52-54
Precisei de três dias para escrever este texto. É que há coisas que, por sua carga de dor, precisam ser passadas por um filtro interno, para que decantem, para que permitam às impurezas voltarem ao fundo dos poços de onde jamais deveriam ter emergido.
A história do holocausto judeu durante a Segunda Guerra é um desses assuntos que só deveriam vir à tona como lição aos homens. Para que nunca mais se repitam. Sussurradas entre o lamento, a vergonha e o firme propósito de bani-las para sempre da terra que nos acolhe.
Algo se quebra na minha alma quando vejo gente tratando o massacre promovido pelos nazistas com displicência ou frivolidade inaceitáveis.
Há de se ter a alma gravemente perturbada para de alguma forma evocar com leviandade aquele instante em que densas sombras desceram sobre os humanos e esconderam a centelha divina em nós.
Nós, capazes de tanta graça e beleza, por vezes criamos cavernas escuras, abismos profundos, horrendos becos. O holocausto judeu foi um desses momentos em que a barbárie prevaleceu e apagou a luz em tantos homens. Um lobo brutal, monstruoso, converteu-os em feras, fê-los arrancar venerandas árvores e pisotear flores miúdas, ainda frescas. Deixou atrás de si uma terra árida, coberta por noite sem lua. Uma noite sem brisa, sem vagalumes. Uma noite feita de silêncios, finitude e desolação.
Holocausto. Dez letras que traduzem sangue, soluços, agonia. Sinônimo de uma pilha de cadáveres, famílias desfeitas, meninos despedaçados, carne marcada e pele se colando aos ossos.
Nas casas abandonadas ficaram pratos ainda quentes sobre as mesas, diários de meninas, meias e sapatos pelo chãoa. Pianos e violinos mudos, cofres espoliados, vidas saqueadas, almas violadas.
Quem seguiu nas filas degradantes? Mães amorosas, pais aflitos, crianças frágeis. Gente cuja vida mal brotava e gente cuja cabeça embranqueceu na longa luta. Comparados a ratos, com estrelas costuradas na roupa e números tatuados nos braços, subiram em trens macabros, dormiram em camas duras, vestiram pijamas listrados, contorceram-se de frio, sentiram o corpo gritar de fome, de sede, de medo. Entraram trêmulos nas câmaras de gás.
Não podem ser esquecidos. Por nenhuma razão, especialmente se for para justificar a política mais rasteira ou os interesses mesquinhos da hora. Fazê-lo é ofender a memória de um povo que há séculos faz da sobrevivência sua rotina.
Tentar reviver esse período de horrores é esbofetear a face da parcela que cultiva gemas raras – honradez, compaixão, ética – e a delicada flor de um amor que desconhece cercas e ultrapassa limites para se lançar, vitorioso, nos braços de todos os homens.
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Ilustração: Grandfather Clock with Blue Wing, de Marc Chagall. Pintada cinco anos após a morte da esposa Bella Rosenfeld, a pintura é carregada de simbolismos. O relógio – que na literatura ídiche é um símbolo do sofrimento – torna-se também receptáculo para a memória do pintor. Na noite escura e fria da morte, permanece a imagem atemporal de um casal abraçado à esquerda do pêndulo. No epílogo da edição póstuma das memórias de Bella, Chagall escreveu: “O trovão retumbou e o dilúvio chegou às seis horas na noite de 2 de setembro de 1944, quando Bella deixou este mundo. Tudo ficou escuro”.
O Holocausto foi uma barbárie da mesma forma que o Holodomor, sendo que este último teve ainda mais vítimas. São horrores que não podemos esquecer e devem ser mostrados sempre.
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Deveriam existir mais Sonia’s Zaghetto neste mundo. Estou sempre à espera do que você escreve. Obrigada Sonia!
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Muito obrigada, minha querida!
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Seu texto sensível e preciso me comove e dá nome e forma à indignação. Obrigada, querida Sonia!
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Obrigada pela sua sensibilidade!
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