Havia uma nega no pendura-saia
Bambambã do fuzuê
Jogava pernada e rabo de arraia
Com os malandros do dendê
Fazia feitiço, no cós da cambraia
Com os pretos do canjerê
Batia na lata de banha e alfaia
Lá na lira do prazer.
Fazia cabelo e barba com navalha
Perfumosa como quê
Bordava os amantes, na barra da saia
E sambava pra gemer
No peito cabiam o amor e a gandaia
Coração de banguelê.
(Nair Grande, de Telma Tavares e Paulo Cesar Feital)
No morro da Mangueira nunca houve quem se igualasse a ela. Nair, rainha do gingado, era a própria Iansã a devorar o coração dos homens e a impor respeito nas rodas de malandragem. Escolhia a quem entregar a curva da cintura e a baba de moça. E ai de quem a contrariasse! Terminava com o nome costurado no cós da saia dela, sofrendo febres pra deixar de ser besta. Uma deusa, sem a menor dúvida – e das tremendas, que subjugam os mortais com a fagulha dos olhos.
No dia em que chegou de Valença e viu pela primeira vez aquele Rio de Janeiro tão grande, onde reinava um samba puro e as congadas em homenagem a São Benedito, jurou que ali seria rainha. Não deu outra.
Nas rodas de jongo era imbatível. Quando os tambores soavam e a cantoria se erguia em torno da fogueira, ela atravessava o mundo e mergulhava na imensidão da África, torcendo em torno de si as raízes dos ancestrais. Aí se convertia em algo esplêndido, uma entidade de pele lustrosa, roupa molhada de suor e dentes a brilhar, intoxicada de magia e prazer. Sentia a nuca se arrepiando quando os Guias chegavam. Entregava-se então a eles, revirando os olhos, as saias, a cabeça dos amantes.
A sua tendinha de sopa era território sagrado. Ali ninguém ousava pôr farinha no caldo. Pagava mais caro. E, se reclamasse, o distraído logo descobriria a força de uma mulher capaz de abrigar no peito uma fúria devastadora e o amor mais generoso. Só ela.
Ladainhas, comidas, festejos e luta eram todo o seu mundo. Um universo de ritmos e de fé para se levar a sério, porque o jongo, meu amigo, não é brincadeira. O jongo é do santo, o jongo é das almas. O jongo mata.
Por isso vinha gente de Vigário Geral e da Serrinha dançar jongo com o povo da Mangueira. E quando nasciam os meninos, os pais os levavam para Nair. Ela mostrava a lua cheia para os recém-nascidos – e eles estavam abençoados.
Uma vez, noitinha chegando, Nair estava concentrada em acender a vela ao lado do copo d’água. Parou quando viu o olho de Oxóssi se aproximando.
“Veste tua roupa branca. Hoje quero dançar contigo.”
Ela foi.
O som dos atabaques rasgou a noite. Candongueiro, puíta e caxambu ou o seu próprio coração? Ele abriu os braços e surgiram bichos e plantas, rios de água fresca, aves coloridas, furacões. O corpo de Nair se encheu de terra, encharcou-se de chuvas e de vida. Ela só via o olho dele, dominador, gigante, risonho. No final, estava exausta, sozinha em meio à multidão, como se tivesse os ouvidos tapados por cera e escamas sobre os olhos.
Ele rompeu o silêncio de mato.
“Pede. Eu te dou.”
O que se pede a um deus?
Ela usou as mãos para enxugar o suor da testa.
“Eu sou mulher de ginga e de santo. Eu quero morrer sambando. Na rua, debaixo do toque de Oxóssi”.
Ele concordou com um gesto de cabeça.
Os dias escoaram. Quando o povo do Omolocô se juntou aos do jongo e fundaram a Estação Primeira de Mangueira, Nair estava entre eles. No começo, até tentaram fazer de Nossa Senhora da Glória a madrinha da escola, mas não deu certo. O posto foi dado a São Sebastião, que era o disfarce para cultuar Oxóssi. Previsível. No morro, o orixá protetor da natureza reinava absoluto. Os terreiros o reverenciavam e lhe faziam grandes festas no dia 20 de janeiro.
Em todo morro do Rio de Janeiro era assim: mal acabavam os rituais aos invisíveis, os participantes se entregavam ao samba. Por isso ninguém estranhou os ogãs se tornarem os ritmistas da nova escola de samba e o toque de Oxóssi estar presente na bateria da Mangueira.
Passaram-se noites e dias no morro do Faria, onde Nair tinha casa. Lá ela criou fama de não levar desaforo pra casa e de encarar homem na briga. Navalha na mão, fazia cabelo, barba e bigode. E quando chegava a noite, toda ela perfumada, entregava-se aos seus amados, cujos nomes costurava na barra da saia.
Nair se entretia em samba e calango, brigas e fuzuês, feijoadas, beijos e pontos cantarolados. De dia cozinhando; de noite batucando e dançando o jongo no morro do Pendura Saia, onde as lavadeiras estendiam as roupas para secar. Reverenciava a vida, tão sagrada, no santo e no profano, no batuque encharcado de alegria.
Naquele fevereiro de 1970, a Mangueira entraria na avenida em plena madrugada. Nair Pequena estaria lá, com sua risada de fogos de artifício, abraçada a Dona Zica, piscando os olhos para Cartola. Passista ainda, aos 72 anos, batom vermelho na boca, vestiu a saia rodada de baiana, ajustou os babados da blusa, pôs os brincos e conferiu o resultado no espelho.
Já havia desfilado no domingo. Agora, na madrugada da Quarta-Feira de Cinzas, as escolas campeãs percorreriam a Presidente Vargas. A Mangueira ficou em terceiro lugar.
Algo indefinível a agoniava naquela noite. Uma saudade antecipada, um quê de fantasia desbotada, um sopro frio pairando sobre todas as coisas, como um presságio a espargir sombras nas alegrias.
Nair afastou os pensamentos de tristeza. Surdos, pandeiros e tamborins logo dariam vida ao samba, sua alegria e religião. E o daquele ano era especial. Falava de cachoeiras, pedras, rios, frutos, flores e praias. Deu-se conta disso somente no instante em que pisou na avenida.
“Um cântico à natureza, domínio de Oxóssi”, pensou, divertida.
Ato contínuo, um véu lhe caiu sobre os olhos. O coração de Nair Pequena sumiu, atravessou o samba. Mudo. Correria, gente aflita no Souza Aguiar. Nada. Cadê Nair? A morte levou. Oxóssi chamou.
O presidente da Mangueira, Juvenal Portela, anunciou a morte dela ao microfone. A bateria emudeceu, a arquibancada silenciou. O Salgueiro calou também, assim como o Império Serrano. Os mangueirenses inclinaram as cabeças, os homens tiraram os chapéus. E durante muitos minutos somente se ouviu um surdo triste, em toque de funeral.
De tarde, Nair foi velada na quadra da Mangueira. Cartola e Jamelão soluçavam, Dona Zica ficou ao lado da amiga. Mais de 2,5 mil pessoas foram ao Cemitério do Caju – a Mangueira se despediu com lágrimas fartas.
Cadê, cadê? Já não posso mais ouvir
Cadê, cadê as congadas de Nair?
Às 17 horas, o corpo de Nair Pequena baixou a uma cova rasa. No reino dos orixás, Oxossi levantou-se devagar e olhou algo a se mover no horizonte. Sorriu e abriu os braços.
—***—
Imagem: Di Cavalcanti, Carnaval de Subúrbio
Texto: Sonia Zaghetto
Nair Pequena/ Arquivo O Globo
Para saber mais:
Reportagem de O Globo sobre Nair Pequena
Dança do Caxambu (jongo), Almir Guineto
Nair Grande, de Telma Tavares e Paulo Cesar Feital. Intérprete: Alcione.
Impecável texto assim como todos. Amo seu texto. Inteligente e sarcástico.
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De arrepiar. Viva Nair Pequena!
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Um presente de valor inestimável tudo que você escreve, Sonia! Fiquei emocionada, maravilhada, inspirada, enquanto sacolejava curiosa e encantada no dinamismo de seu texto. Vocé escreve de um jeito muito especial, que toca profundamente minha sensibilidade, que me faz despertar carinhosamente e me conduz às pressas, mas com ritmo de um poema, a um mundo de indizível beleza.
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Muitíssimo obrigada, minha querida! Para um escritor, nada como receber um comentário assim. Deixa a gente mais inspirado.
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Que ritmo maravilhoso nesse seu texto, Soninha! De tirar o chapéu!
Delicada e vibrante leitura de carnaval!
Obrigada,
Thanya
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Muito obrigada, querida Thanya. Um abraço super carinhoso,
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