No Livro III das Metamorfoses, o poeta romano Ovídio narra uma das mais complexas e citadas histórias da mitologia grega, a de Narciso. Na Beócia, a ninfa Liríope banha-se e é desejada pelo rio, o deus Cefiso. Ele a violenta e Liríope dá à luz um menino cuja beleza encanta homens, mulheres e até as ninfas. Narciso, entretanto, por ninguém se interessa.

Uma bela ninfa, Eco, o ama. Ele a menospreza, como a todas as demais. Eco se oculta nas sombras da floresta, onde se consome. As carnes secam e os ossos se convertem em rochas. Resta apenas a voz a repetir nos ermos.

Os mitos encerram lições. A de Narciso é que toda arrogância paga alto preço. As ninfas desprezadas pedem aos deuses para vingá-las. Nêmesis – que pune a hübris, a desmedida que ultraja os imortais – condena Narciso. Cansado da caça, ele encontra uma lagoa. Nenhum pássaro, cabra ou pastor conhecia o lugar. Nenhuma folha cai sobre a superfície de cristal. Narciso vê o lugar cercado de grama e árvores que fazem sombra. Tem sede. Aproxima-se para beber água e uma outra sede passa a devorá-lo. Contempla a pele perfeita, os ombros largos, os olhos brilhantes e o desenho da boca. Encanta-se consigo mesmo. “Torna-se amante e amado; deseja e é o objeto de desejo. Ele se queima e os fogos que acende são os mesmos que o consomem”, escreveu Ovídio.

Encantado, Narciso deita-se nas margens da lagoa a se contemplar. Definha até morrer. Finda-se solitário, lamuriando-se à natureza que o cerca. Suas últimas palavras, repetidas por Eco, são: “Objeto amado em vão, adeus.”

Mesmo quando a noite eterna cai sobre seus olhos, ele ainda busca nas negras águas do Estige a sua imagem adorada. As náiades, suas irmãs, choram-lhe a morte e cortam os cabelos; as dríades se lamentam e Eco repete suas dores. As ninfas preparam as tochas e a fogueira para cremar o corpo de Narciso, mas este desaparece. Em seu lugar, surge uma flor dourada.

O mito deu origem ao termo narcisismo

É interessante pensar no radical grego do nome Narciso. Νάρκη (narke) corresponde a dormir, entorpecer-se. O narcisismo é uma forma de entorpecimento. Embevecido consigo mesmo, o homem se fecha a tudo o mais.

É assim que vemos, nas redes, a todo instante, as demonstrações de profunda egolatria. E nem estou falando dos que se exibem em festas, viagens, lugares, propagadeando uma vida supostamente perfeita. Sobre isso muito já se escreveu. Vou além.

Falo da incapacidade do narcisista de se abrir ao novo e ao diferente, de olhar além do próprio umbigo. Talvez aí esteja um dos fatores do crescente radicalismo, dos extremismos que nos sequestram. O narcisista está embevecido consigo mesmo, certo de que tem a palavra final, a onisciência. Ele se julga superior aos demais, ele sabe! Não há qualquer coisa que o atraia a não ser o seu reflexo. Muito natural, muito humano. Narciso é legião.

Gosto é algo pessoal, isso é óbvio. Fruto do que acumulamos, nutrimos, aprendemos, incorporamos. Narcisismo é desejar transformar o gosto pessoal em regra geral, lei para todos. Por isso os narcisos das redes sociais põem-se a vigiar, criticar violentamente as escolhas alheias e a defender o próprio pensamento como expressão máxima da verdade. Estão em uma cruzada, na qual desejam submeter os outros à sua visão via assédio, agressão, ironia, desprezo, bloqueio. O que desejam, no fundo, é forjar os demais à sua imagem e semelhança.

Os desprezados aos poucos desaparecem, como a ninfa Eco. Tornam-se invisíveis. Sua personalidade só serve para repetir a fala e opções do ego narcísico: sua religião, sua tribo, seu ídolo político, seu estilo musical, sua comida, seu modo de vida. São estes a batuta que deve reger o mundo.

Arrogância digna do Narciso original.

No entanto, é preciso ter cautela. A mente alheia é território sagrado e pantanoso. É arriscado querer ali fincar bandeiras não solicitadas.

Fato curioso, acrescento, é que os narcisos modernos não se dão conta do quanto perdem ao se manterem fechados em si mesmos. Vou partir para um só exemplo, algo pueril.

Atente para a maneira como alguns de nós se relacionam com a riquíssima pluralidade brasileira. Cada região do Brasil é um mini país. Mudam os sotaques, as músicas, os sabores, o clima, mas poucos de nós se dedicam a descobri-los. Há danças, frutas, hábitos e histórias que desconhecemos ou mesmo rejeitamos porque imaginamos, de alguma forma, sermos superiores. Simultaneamente, os mesmos que dão as costas para o Brasil se voltam para outros países buscando elevá-los a um panteão quase divino. Europa e América do Norte são superiores, modelares. Esquecem que, nesses lugares, os narcisos locais destinam aos brasileiros o mesmo desprezo que no Brasil é direcionado aos “inferiores” da nossa terra. E la nave va. Os dentes da roda de samsara não perdoam os distraídos: trituram-nos sem dó.

É muito fácil vestir o hábito do fidalgo exilado num lugar primitivo, alegando reencarnação ou azar. Difícil mesmo é cultivar este nosso gramado, arrancar as ervas daninhas, parar de pisoteá-lo e não se limitar a reclamar de que anda feio.

Por outro lado, esquecemos que gosto é também construção. O tempo que dedicamos a conhecer e a cultivar algo é decisivo para que amemos tal coisa. É uma atividade prazerosa. Por vezes permite que se descubra belos tesouros bem debaixo do nariz.

Faço disso uma prática há muito tempo. Tenho por hábito observar atentamente cada lugar onde vivo ou visito. Em seguida eu o incorporo a mim. Assim, aprendo a amar aquele espaço e sua gente, a conhecê-lo além das superficialidades e clichês. De Montreal, Beijing, Oiapoque e cidades indianas, californianas, nordestinas e amazônicas eu trouxe grandes aprendizados. É um mergulho doce, um testar das papilas gustativas nos sabores novos, um estacionar calmo para entender a lógica e as regras locais, os rumos do pensamento e do comportamento coletivos. Acho enriquecedor.

Aplico o método também às pessoas.

Para fazer isso é preciso parar um pouco, respirar devagar, abrir bem os olhos, baixar as armas. É necessário, ainda, fazer um esforço para trancar os preconceitos e condicionamentos num grande armário. Assim, abre-se espaço para o novo, que está logo à frente.

Gosto de pensar que este é um exercício que me ajuda a não cair nas armadilhas que preparo para mim mesma, como todos os outros seres humanos.

Narra Ovídio que o vidente Tirésias vaticinou que Narciso teria vida longa desde que não conhecesse a si mesmo. Algumas traduções dizem que o oráculo teria advertido que Narciso não poderia “ver” a si mesmo. E isso, convenhamos, é exatamente a mesma coisa: ver a si mesmo não se refere a reflexos na água, mas ao mergulho profundo, no qual cada um se enxerga por inteiro.

O mito é exato: a única forma de combater o narcisismo desenfreado que nos seduz a todo instante é contemplar detidamente o que somos e fazemos, matar esse ego infantilizado, afogá-lo no lago, transfigurá-lo em flor – o que não deixa de ser uma outra metáfora deliciosa.

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Ilustração: Narciso, por Michelangelo Merisi, o Caravaggio.