De loin je la crus seule; et m’étant avancé vers elle pour l’aider à marcher, je vis qu’elle tenait Paul par le bras, enveloppé presque en entier de la même couverture, riant l’un et l’autre d’être ensemble à l’abri sous un parapluie de leur invention.*
Paul et Virginie. Bernardin de Saint-Pierre
O que seria de nós se não fosse o deus acaso?
O acaso que me fez sentar ao teu lado na festa, que me fez rir da tua conversa sem pé nem cabeça?
O que seria de nós se eu tivesse uma crise de enxaqueca naquele dia, se o carro quebrasse, se não tivéssemos mergulhado nos olhos um do outro, a falar de mil nadas e de grandes coisas?
Bastaria que um saísse antes do outro ou que não se falasse sobre aquele assunto que nos fez marcar um novo encontro.
Mínima fosse a mudança dos astros e esse universo que nasceu em nós se perderia.
Mas ele, o divino acaso, ria-se dos incautos.
Experimentou juntar Picasso e van Gogh na mesma tela e se divertiu em ver como ficavam bem, juntos.
Graças à divindade aqui estamos, algemados um ao outro, reféns de sentimentos que não ousam dizer o nome, encharcados de sonhos que não têm chance de pisar o solo da realidade.
Eu e tu, feitos de poucas certezas e muitas dúvidas.
Tu e eu, que não acreditamos em anjos, mas somos devotos de um amor que apavora e redime.
Afilhados do acaso que se converteu em destino, trilhamos juntos essa via sem encruzilhadas.
Eu soube – e te disse isso a sussurrar para que ninguém ouvisse, nem mesmo nas moradas onde os imortais habitam – que um grande perigo ronda amores intensos.
É preciso cautela.
Os deuses constroem armadilhas.
Enquanto espiam o deleite do povo cá embaixo, mordem uvas, os perversos. E seus olhos se estreitam de prazer púrpura.
Sabem que as coisas não permanecem.
Por isso prometi desafiá-los. E, no altar pagão dos nossos dias, ser teu sal, tua água; entregar à tua boca o mel da vida.
Na palma da tua mão vi a rota de nossa jornada juntos e percorri com os dedos as veias que saltavam do teu braço.
São agora os meus caminhos.
Tu puseste na minha boca o gosto da liberdade.
Eu a sorvi devagar.
Tinha sabor de mar, mas também de folha verde e cachorro molhado.
Um cadeado de memórias se abriu para nós há algum tempo. Fechava a porta que jamais ousamos abrir. Tão absortos estávamos que, sem perceber, já estavam caídas as ferragens e aberto o portal das coisas nunca experimentadas.
Depois de abolir asperezas e acumular conchas abarrotadas de poemas, estamos finalmente prontos para o passo seguinte: provar ao deus acaso que, mesmo sem ele, eu e tu iríamos nos achar neste vasto mundo.
Porque um amor assim subverte a ordem das coisas, derrota divindades e encontra passagens secretas em calabouços de pedra.
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Pintura: A Tempestade (La Tempête). Pierre Auguste Cot.
Metropolitan Museum of Art. New York.
* De longe eu acreditei que ela estava sozinha; e, tendo avançado em sua direção para ajudá-la a andar, vi que estava segurando Paul pelo braço, quase todo envolto pela mesma cobertura, rindo os dois por estarem sob o abrigo do guarda-chuva que inventaram.
Ah le die du hasard …
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