Sonia Zaghetto

O tempo é um escultor. Hoje eu sei. Esculpiu a mulher que sou. Umedeceu a argila dos meus dias com lágrimas salgadas que aprendi a carregar como troféus e símbolos de uma vida vitoriosa. Eu venci guerras – reais e metafóricas – e estou aqui para contar. E se choro é de alívio, jamais por vergonha ou lamento.

Eu sou uma Rosie.

Oakland é minha cidade desde que deixamos a casa em New Orleans, com as tristes lembranças da crueldade dos homens e da força das enchentes inundando nossas vidas, arrastando os poucos bens e deixando um ar de eterna desesperança nos olhos de minha avó.

Aprendi a sufocar a saudade dos bayous da Louisiana nesta California ensolarada, de céu azul sem nuvens nos meses de verão. Aqui as rosas perfumam as noites durante muitos meses, as árvores vergam de limões, ameixas, damascos e tangerinas e os morros fazem uma cerca que deixa o nosso vale com temperatura agradável durante o ano todo.

Foi aqui que eu casei com César. Quase dois meninos, enfrentando um mundo que encarava nossa pele como se fosse ofensa. Nunca entendi isso. A pele dele era linda. Petróleo na epiderme a contrastar com os dentes tão brancos. Um rosto de olhos meio zombeteiros e lábios sempre prontos para risos e beijos.

“Sophie, acabou seu tempo de lágrimas. O nosso será um tempo de amor. E seremos sempre assim, doces um com o outro. Até “o deus” ficará diabético com a gente, coitado”, repetia desde o dia em que me beijou pela primeira vez, no estacionamento da escolinha do meu bairro.

“Não blasfema, César. E não chama “o deus”. Parece meio desrespeitoso. Imagina se o pastor escuta!”.

Ele ria e se voltava para o nosso filhinho.

“Viu, Sam? Não pode chamar “o deus” de “o deus”. Só de Deus.”

O pequeno, herdeiro da aparência e da sagacidade do pai, fingia obediência.

“Claro que não vou chamar “o deus” de “o deus”, pai”.

Cesar gargalhava e erguia o moleque no colo.

“Vem cá, espertinho. Vamos roçar o mato”.

Eu ria, ainda a trançar os cabelos de Nina, nossa menina. E meu coração se enchia de uma alegria que até hoje não sei explicar. Como se uma estrela de repente explodisse no meu peito, espalhando calor e claridade pela vizinhança toda.

Mas veio a Guerra. Meu César se foi. Lembro ainda hoje daquele nó na garganta quando o vimos sair, com o uniforme impecável, o farnel às costas. Eu, de mãos dadas com os meninos, encarei o navio como um inimigo.

Ele fechou a cara. Um raro momento em que me olhou sem que seus olhos traíssem aquele amor que nós dois jamais conseguíamos esconder.

“Ouça com atenção, Sophie. Você já chorou demais nesta sua vida. Tem lágrimas por avós espancados, por tias abandonadas, por mãe faminta. Chibata, segregação, desprezo e solidão estão lá atrás. Não vão voltar. A partir de agora, nada te vergará. Não chora. Eu te proíbo de chorar”. E passou os dedos polegares nos cantos de meus olhos. Com delicadeza ergueu meu queixo e repetiu, bem devagar: “Nunca mais, você entendeu? Eu voltarei. Para você, para nossos meninos. Eu voltarei.”

“Oh, baby, sou apenas humana. Isso é tarefa de deuses”.

“Você é maior do que imagina. Você e eu sobreviveremos. Espere por mim”.

Mo laime toi.

Mo laime toi. Swinye-toi, my love, mon amour.

Na volta, a casinha tão pobre parecia imensa sem ele. Um vento frio me gelava por dentro. Eram tempos de medo. Oh, Lord, não me deixe só neste mundo tão vasto.

Logo um fantasma familiar me visitou. Fome. Ferviam as cidades da Califórnia com 120 mil novos habitantes. Bocas demais para alimentar. Quanta gente, meu Deus. Richmond, Berkeley e Albany haviam sido tomadas pelos trabalhadores que vinham de todo o país e viviam em casas recém-construídas, espalhadas por toda a área da baía de São Francisco. Estendiam roupas em varais improvisados, espantavam moscas e sobreviviam. Era preciso trabalhar.

Na vizinha Richmond, quatro shipyards foram construídos ao longo da orla marítima. Havia oportunidades de emprego. Milhares, diziam, inclusive para os colored e as mulheres.

Eu perambulava pelas ruas. Batia nas portas, implorando para cozinhar, limpar chão, lavar roupas. Em vão. Eram tempos de recessão, parcimônia, pouco luxo. Naquela tarde em que o vento fustigava meu rosto, entrei em casa sem fazer ruído. As crianças, tão magras, cochilavam embaladas pela voz de minha mãe. Aquela voz de timbre tão peculiar, que cantava spirituals capazes, tenho certeza, de fazer o próprio Deus inclinar a cabeça em direção aos mortais e suas lutas.

Nas panelas da casa, gumbo e jambalaya já não havia. Nem na sala a alegria da música que fazia os pés se mexerem sozinhos em alegria e risos. A ausência de César era traduzida por diversos silêncios, por lacunas várias.

Tomei a sopa rala. Repolho. Sempre detestei repolho. Minha mãe lavava os pratos quando lhe mostrei o papel meio amassado que eu trouxera da rua. “Se você usa uma batedeira elétrica, também pode aprender a usar uma furadeira” – li em voz alta. Ela concordou com um gesto de cabeça e um riso calmo. Talvez pensasse em plantações de algodão, exílio e peregrinações de outros tempos tristes, mas, quando falou, sua voz soou estranhamente forte: “Trabalho de homem. Você consegue fazer”.

Concordei sem dizer palavra e permaneci de olhos abertos noite adentro. “Eu consigo fazer. Eu consigo”.

No outro dia, no estaleiro, meu medo desapareceu ao ver as outras candidatas. Magras igual a mim, os mesmos olhos oscilando entre o temor e a determinação. Fui aceita. Eu tinha um emprego – o primeiro de minha curta vida. Tornos, rebites, brocas, parafusos e soldas se tornaram familiares.

Lenço vermelho na cabeça, todas as manhãs eu pegava o trem para os estaleiros de Richmond. Ia ajudar a construir navios. Na hora do almoço, sentava sob a árvore centenária e espiava o horizonte na calma aparente da baía.

César estava além daquelas águas enganosas e geladas. Cada carta que chegava era um alívio. Eu sempre carregava comigo a última delas e a relia na hora do almoço, bebendo palavras que venciam distâncias, ultrapassavam trincheiras e escapavam de balas e rios de sangue. De vez em quando, dos envelopes saltavam fotos que iam pontuando a vida ao longe: Você está magro. Está comendo direito? Seu cabelo cresceu! As crianças estão lindas.

Ele me enviava poemas, todos numerados para que eu não perdesse a conta do número de dias que estávamos separados. “É uma contagem de presidiário”, explicou numa das cartas. Protestei: “É uma contagem de amor”.

Passaram-se dias, meses, anos. As memórias se diluíam, contra a nossa vontade. O cheiro da pele, o gosto da boca, as risadas entre beijos, o timbre da voz pareciam escapar enquanto lutávamos para retê-los. Demos para nos repetir. Os verbos e substantivos não davam conta. Ainda assim, permanecíamos respirando lembranças, rememorando detalhes, recontando as mesmas histórias. Tempo de pausa e espera. Aqui e ali um arrepio, um calafrio, que a esperança rapidamente cobria, toda ela plena e encharcada de sonhos.

No fim da tarde eu entrava em casa; a exaustão a me cobrir com seu manto de sono. As crianças largavam-se na minha direção com abraços desajeitados, histórias ininteligíveis e reclamações. Dormiam tarde, enroscadas no meu colo, mortas de medo de que eu escapasse delas no dia seguinte. Mal adormeciam e eu as punha no leito com delicadeza. Logo iniciava as tarefas restantes do dia – contas a pagar, roupas a lavar, lista de compras, um chão para esfregar.

O cansaço me vencia. O ultimo pensamento, assim como o primeiro ao acordar, sempre seriam dele. Um detalhe, uma lembrança tecida de riso ou a invenção do dia do reencontro. Este chegou, finalmente, num dia chuvoso de 1945. Há meses eu deixara escapar um suspiro aliviado quando a frase tão esperada tomara as manchetes dos jornais: a guerra havia acabado. Os dias escoavam e ele demorava a vir.

Finalmente, um telegrama anunciou o fim dos tempos de angustiosa espera. Fui ao porto, com os filhos espremidos em roupas de domingo muito engomadas. O coração, um descompasso.

Quando ele surgiu finalmente, o mundo derreteu em torno de nós dois. Cesar me abraçou sem dizer nada. Nem poderia, acho. Esfregou o rosto nos meus cabelos até fazer cair o lenço de bolinhas brancas.

Eu também fiquei quieta. Não sei se já contei, mas quando ele me abraça não há ar suficiente no mundo para eu respirar. Ficamos assim por um tempo que não sei dizer, até que uma voz calorosa emergiu da nuvem indistinta em torno de nós:

“Se um homem da Louisiana volta vivo de uma guerra é hora de preparar o roux para o gumbo!”

Houve música e comida cajun noite adentro. E doçuras na madrugada. No outro dia, exausta, acordei bem cedo. Enquanto soprava o café fumegante, Sam choramingou, sonolento: “Agora você não precisa mais trabalhar, mamãe. A guerra acabou e o papai está aqui”.

Uma ruga surgiu entre as minhas sobrancelhas. César adoçou os olhos e contemplou detidamente os botões da minha roupa. Levantou devagar, tirou uma poeira imaginária do macacão azul e, voltando-se para o filho, sorriu: “Há muitas guerras no mundo. Vou te contar sobre elas enquanto a gente roça o mato. Bom trabalho, Sophie”.

Pela primeira vez peguei o trem sem temer o futuro. Um novo front estava bem ali, mas eu não tinha medo ou lágrimas.

Eu desaprendi a chorar nos anos passados e assim permaneceria na nova guerra que se iniciava.

Vento e gotas de chuva agitavam a vida além da janela.

Bom trabalho, Sophie. Ou seria Rosie?

***

Notas:

1. Os estaleiros de Richmond construíram 747 navios Victory e Liberty durante a Segunda Guerra Mundial, mais do que qualquer outro nos EUA. A cidade quebrou muitos recordes e chegou a construir o Liberty em cinco dias. Em média, os estaleiros podiam construir um navio em trinta dias.

2. “Mo laime toi” e “Swinye-toi” significam “eu te amo” e “cuide-se bem” em dialeto Cajun, falado pelos descendentes de antigos escravos que vieram do Canadá para a Louisiana, nos Estados Unidos.

3. O roux é o molho típico para o preparo de um dos pratos mais tradicionais da culinária Cajun, o gumbo.

4. A foto principal mostra uma das “Rosies”, não identificada, trabalhando em um bombardeiro A-31 Vengeance, em Nashville, Tennessee (1943).

5. Esta é uma história de amor da série literária que eu e Cláudio Chinaski criamos e está disponível na nossa página (clique aqui para conhecer), mas também uma forma de falar das mulheres que trabalharam nas fábricas e estaleiros durante a II Guerra Mundial. Deu-se a elas o nome de Rosies. Estimuladas pelo governo dos EUA, ocuparam na indústria os postos de trabalho antes considerados exclusivamente masculinos.

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Nas últimas décadas, a participação feminina nos anos de guerra foi traduzida no cartaz “We Can Do It!”, que J. Howard Miller fez em 1943 para a empresa Westinghouse e nem era tão conhecido durante a guerra.

Na época,a imagem mais famosa de “Rosie the Riveter”, símbolo das mulheres que se engajaram no esforço de guerra, foi a produzida por Norman Rockwell para a capa do Saturday Evening Post no Memorial Day, em 29 de maio de 1943. A ilustração de Rockwell mostra uma mulher musculosa fazendo sua pausa para o almoço com uma rebitadeira no colo e pisando no livro de Adolf Hitler, Mein Kampf.

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Após sua poderosa e estimulada participação no esforço de guerra, assumindo trabalhos antes considerado exclusivamente masculinos, as mulheres norte-americanas perderam empregos, destinados aos homens que voltavam do front, ou passaram a receber salários francamente inferiores. Ainda assim, a figura de “Rosie, the Riveter” e a atuação feminina durante a Guerra se tornaram decisivas para que as mulheres ocupassem o mercado de trabalho.