“Quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.”
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” José Saramago. Ensaio sobre a Cegueira.
De repente, o dia parece noite. Um breu nas almas, um frio na espinha. Nosso mundo tão sólido desaba. Toda a realidade conhecida se reinventa. Nossas máquinas voadoras paralisadas no chão, as fronteiras fechadas, nós trancados em casa a espiar o derretimento global, acuados pelo inimigo que não vemos.
Parece ficção. Lembra A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, em que a poderosa máquina marciana sucumbe a um microorganismo para o qual os alienígenas não estavam preparados.
A arte – particularmente a literatura – é pródiga em explorar cenas semelhantes às que vemos hoje. A imaginação dos escritores retrata com precisão nossas angústias quando as regras sociais se afrouxam e o medo nos domina. É que os poetas tem um quê de filósofos e uma pitada de antropólogos, sociólogos, psicólogos. Grandes textos de ficção expõem o que se esconde dentro da gente, adivinham o que o pavor causa nas almas. Tratam da condição humana frente à incerteza, à solidão, ao caos e à morte. Tudo põem em densidade e em personagens que se tornam espelhos dos nossos sentimentos e tormentos.
A pandemia de coronavírus abala estruturas e certezas. Diante do avanço de uma doença da qual pouco sabemos, vemo-nos obrigados a nos repensar e ao grupo ao qual pertencemos. O que vemos é surpresa e mistério – e nem sempre nos agrada.
Se, de um lado, epidemias fazem florescer em alguns a generosidade, a compaixão, o auto-aprimoramento emocional e intelectual, o auto-sacrifício, de outro oferece oportunidades a quem se vale da ocasião para deixar emergir o mais repugnante egoísmo, os mais baixos sentimentos.
A arte oferece um campo neutro para refletir sobre isso. Por isso renovou-se o interesse por Albert Camus (A Peste) e pelo Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago.
Retratam ambos os livros a reação humana perante a ameaça, o confinamento, o temor da morte, da doença, do que não conseguimos controlar. De uma distância segura, nos falam de ética e dos fantasmas que escondemos no alçapão mais profundo da alma. Sem ousar apontar roteiros, fornecem mecanismos para conter os lobos internos e, simultaneamente, nos convidam, por empatia, a alimentar a chama da grandeza em nós.
Antes de Saramago e Camus, um outro escritor se debruçou sobre o tema. Em 1721, quando a peste bubônica ameaçava novamente a Europa, Daniel Defoe escreveu Um Diário do Ano da Peste. Desejava alertar seus contemporâneos indiferentes ao perigo que se aproximava. Pelos olhos de um homem que escolheu ficar enquanto multidões fugiam, Defoe retratou vividamente uma Londres atingida pela doença meio século antes. Sua narrativa versa sobre a agonia da metrópole e o terror de um povo desamparado, mergulhado em uma tragédia que não compreendia.
Trezentos anos depois, Defoe é atual. Inquietantemente atual.
Está tudo lá, em palavras exatas: o medo onipresente, os golpes contra os atemorizados, os fortes cuidando dos doentes, as risadas dos cínicos, a fé dos religiosos e o impacto de ficar isolado dentro de casa.
Na contracapa do livro, o editor deu o tom: “Bring out your dead! Tragam seus mortos! O canto incessante da destruição ecoou por uma cidade de ruas vazias e covas lotadas. Isso era Londres no ano de 1665, o Ano da Grande Peste”.
O personagem principal lamenta os que inicialmente se voltaram para adivinhos, religiosos fanáticos, astrólogos e filósofos. Não fugiram, se precaveram ou estocaram provisões. Desdenharam a ameaça. Em vez disso, gastaram tempo e dinheiro com charlatães e evitaram o pensamento racional durante muito tempo. Despertaram tarde demais.
Nenhum outro assunto recebe tanto foco em Defoe quanto o fechamento das casas. O escritor explora a contradição, a vacilação e a confusão reinantes – algo que se repete hoje. O governo da cidade determina o fechamento voluntário das residências, mas na prática isso não funciona. As famílias se recusam a contar às autoridades sobre parentes doentes; homens subornam os vigias para escapar ou se envolvem em brigas violentas com estes; alguns escapam do confinamento; muitos registram traumas psicológicos como resultado do isolamento forçado, mergulhando em melancolia e depressão. Numa época sem as modernas interações virtuais e opções de lazer, era mais difícil trancar-se em casa por meses a fim de evitar a doença e a morte. E esta é a única diferença entre nós e os ingleses de 1665.
“E muitas famílias prevendo a aproximação da enfermidade, estocaram provisões suficientes para a família inteira e se calaram tão completamente, que não foram vistas nem ouvidas, até que a infecção cessasse” – Um Diário do Ano da Peste.
Como o Diário de Defoe pretendia oferecer conselhos à Londres de 1722, que poderia ter outro surto de peste, esta citação específica expressa uma das duas melhores estratégias para sobreviver à doença. A primeira era fugir dela, e a segunda era suprir provisões suficientes para a duração da doença e trancar a família dentro de casa. Qualquer contato com uma pessoa de fora ameaçava o frágil santuário onde reinava a saúde. Quase todos os londrinos que fizeram isso saíram ilesos da praga.
A prática, no entanto, era difícil de fazer. Sem geladeiras e freezers, supermercados e outras comodidades, eventualmente era preciso se reabastecer de suprimentos e os mais pobres tinham dificuldade extra para conseguir provisões. O próprio personagem principal às vezes não suportava ficar trancado em casa por muitos dias e em algumas ocasiões quebrou suas resoluções e saiu a andar pela cidade. Não bastava comida: era necessário se preparar mentalmente para o isolamento total que salvaria vidas.
A radiografia da alma humana feita por Daniel Defoe mostra, ainda, os que ridicularizavam os alertas, zombavam da doença, mostravam-se indiferentes ao luto e aos mortos, buscavam distrações tolas e atormentavam os outros homens com boatos. Seu pavor e desespero são palpáveis; sua fúria é pura reação de ignorantes que se vêem incapazes de lutar contra uma tragédia intransponível.
“Os cidadãos ausentes, que, embora tenham fugido para a segurança, ainda estavam muito interessados no bem-estar daqueles que deixaram para trás, não esqueciam de contribuir para o socorro aos pobres” – Um Diário do Ano da Peste.
Defoe encoraja seus contemporâneos a serem compassivos, elogia os londrinos do passado por seus gestos de caridade, observando que, sem as contribuições da classe média e dos ricos, os pobres passariam fome. Ele se comove com os donos de pequenos negócios fechados, os empregados domésticos dispensados e os trabalhadores do comércio desempregados. Para ele, a cidade não havia mergulhado em anarquia e indignidade unicamente porque o desejo de fazer o bem estava vivo.
A epidemia de 1665 trouxe desordem e toda sorte de superstição e boatos, exatamente como vemos hoje. Alguns evocaram castigos de Deus sobre a cidade, enfermeiras foram acusadas de apressar a morte de pacientes, outros deixaram para trás os corpos de seus familiares. Mesmo assim, Defoe – em seu propósito educativo – evita criar um tipo de cena que Saramago não se furta a descrever em cores fortes e chocantes: os saques a comércios e casas. Os pobres de Defoe não se rebelam, não ameaçam as autoridades, não devastam cidades próximas, nem invadem as casas dos ricos. Apenas morrem em grandes quantidades, mansos.
Defoe optou por fugir à realidade dos confrontos sociais, nesse caso, e retratar uma Londres resiliente, que serviria de modelo para todas as cidades do mundo. Por isso relata muito mais histórias de caridade e humanidade do que de sordidez. Na tentativa de desenhar essa imagem ideal, amansa os instintos da multidão e elogia as autoridades por sua rapidez em enterrar os mortos, pela humildade das declarações, medidas sábias e esforços para manter alto o suprimento de comida para os cidadãos pobres e famintos. Em suma, a Londres de Defoe durante a grande peste de 1665 é construída como exemplo de conduta durante um período de imensa tribulação. As motivações de Defoe, afirmam os historiadores, eram apoiar o governo de Horace Walpole e inspirar orgulho nacional pelo caráter dos londrinos em situações-limite. Por isso, no romance, a cidade não entrou em colapso.
Já em Ensaio sobre a Cegueira, muito mais realista e não vinculado a qualquer objetivo político, há o caos decorrente da queda das regras civilizatórias, a convulsão social e a degradação das relações. Um panorama desolador. Em A Peste também surgem aproveitadores, como o personagem que lucra no mercado paralelo de produtos que já não se encontra nos mercados.
No romance de Camus, num primeiro momento, as autoridades hesitam em dar publicidade à doença. Também com o pé na realidade, o escritor registra a forma como a desinformação e a imaginação geram histeria, comportamentos levianos, criminosos e xenófobos.
Todos os romances citados são um convite para que cada um se reconheça como parte atuante de uma coletividade. Acenam discretamente com a possibilidade de uma trégua na grande luta que nos divide. Identificam-nos como seres humanos lutando juntos contra um inimigo comum, dividindo angústias e problemas. Em tais situações já não há ambiente para um só herói a salvar o grupo. Os homens se apoiam uns nos outros, pois a doença e a morte atacam a todos sem distinção de etnia, status social ou poder.
Talvez quem escreva sobre dramas coletivos não escape à tentação de deixar um recado positivo, de semear um sentimento de esperança, mesmo que o preço a pagar seja um certo sacrifício no altar da literatura. Os críticos louvariam finais amargos e pesados, mas nem sempre os escritores não dão ouvidos aos críticos, felizmente.
Camus, que inicia A Peste falando com algum cinismo que Orã, na aparência, não pensa (é uma cidade perfeitamente moderna, onde os homens são obrigados a amar sem saber) rende-se: “Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana.”
Quanto a nós, em 2020, as opções estão postas. Na vida, como na literatura, há escolhas a fazer perante as grandes tragédias. São os sacrifícios que se faz ou as pedras de tropeço que se espalha no caminho próprio ou alheio.
Mais que a ficção, a vida se revela plena de grandezas e oportunidades, como na história que narro agora.
Em 1665, justamente no tempo da grande peste descrito por Daniel Defoe, diversas universidades inglesas mandaram os alunos para casa. Um dos alunos do Trinity College, de Cambridge, era um certo Isaac Newton. Tinha 22 anos quando precisou voltar para Woolsthorpe Manor. O tempo em que Newton passou confinado, estudando e elaborando teses, ficaria conhecido como o “ano miraculoso”. Voltou a Cambridge em 1667, levando debaixo do braço a sua Teoria da Gravitação, assim como a exposição definitiva do método das fluxões (a teoria fundamental do cálculo e sua aplicação ao estudo dos movimentos) e os princípios da sua teoria das cores. Em resumo, os primeiros passos para a grande revolução científica moderna foram dados ali, nos meses de isolamento por causa de uma doença. O estudo da Física e o nosso mundo nunca mais foram os mesmos.
“A adversidade põe à prova os espíritos”, escreveu mestre Shakespeare em Coriolano. Põe mesmo. Traduz com precisão o que vai dentro de nós.
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Imagem: Office in a Small City, de Edward Hopper
Para Saber Mais:
Ensaio sobre a Cegueira é um romance do escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura de 1998. O livro conta a história de uma “treva branca” que torna cegos, um a um, os habitantes de uma cidade. A epidemia leva ao colapso social e abala as estruturas da vida como a conhecemos.
Um Jornal do Ano da Peste é um romance do inglês Daniel Defoe, publicado pela primeira vez em março de 1722. É um relato das experiências de um homem do ano de 1665, em que a Grande Praga, a peste bubônica, atingiu a cidade de Londres. O livro é contado cronologicamente. Apresentado como testemunha ocular dos eventos da época, foi escrito nos anos imediatamente anteriores à primeira publicação do livro em março de 1722. Defoe tinha apenas cinco anos em 1665, e o livro foi publicado sob as iniciais HF, provavelmente por ser baseado nos diários do tio de Defoe, Henry Foe. No livro, Daniel Defoe identifica bairros, ruas e até casas em que os eventos ocorreram. Também fornece tabelas de números de vítimas. Foi inicialmente lido como uma obra de não ficção, mas na década de 1780 o status ficcional da obra foi aceito. Atualmente, os críticos literários concordam que deve ser descrito como um ‘romance histórico’.
A Peste é um romance do franco-argelino Albert Camus, prêmio Nobel de Literatura de 1957. Foi publicado em 1947, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, e conta a história da chegada de uma epidemia à cidade de Orã, na Argélia. Os habitantes de Orã começam a morrer após alguns dias de febre e gânglios inflamados. O prefeito bota a cidade toda de quarentena. Ninguém mais pode entrar ou sair. O personagem principal é um médico, Rieux, que combate a doença até o momento em que ela se dissipa, após muitas mortes. O leitor acompanha como a população reage ao isolamento da cidade, às mortes e ao medo, alternando entre seus personagens os que sucumbem à desolação, dão pequenos golpes e os que adotam a exposição ao risco a fim de enfrentar a disseminação da peste e trazer algum conforto aos que sofrem. Logo após sua publicação, A Peste foi visto como uma analogia sobre a ocupação alemã em Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Parte dessa interpretação se deu por causa da epígrafe do livro, uma frase de Daniel Defoe: “É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”.
A Guerra dos Mundos é um romance de ficção científica de Herbert George Wells, escritor britânico. Foi publicado em capítulos primeiramente em 1897 no Reino Unido pela Pearson’s Magazine e lançado como romance no ano seguinte. É uma história sobre a invasão da Terra por marcianos inteligentes, dotados de um poderoso raio carbonizador e máquinas assassinas. A ação começa no início do século XX, nos arredores de Londres. O narrador e personagem principal, que não é identificado no livro, testemunha a invasão e a evacuação em massa de Londres. Os marcianos se alimentam dos humanos, absorvendo o seu sangue. Assim, contraem uma bactéria contra a qual não tinham imunidade, e morrem.