Minha menina faz aniversário hoje. Trinta anos. É médica em um hospital público de São Paulo e pela primeira vez estamos separadas nesta data. Queria ter encomendado um bolo. Não pude. Escrevi esta carta. É o seu presente, filha.
Hoje cedo você brincou e disse que não gostaria mais de vivenciar outro momento histórico igual a esse. Eu compreendo, mas estou aqui para mais uma vez para fazer o que melhor as mães fazem: oferecer conforto, esperança e aconchego.
Venha, imagine-se aqui no meu colo. Feche os olhos e sinta meus dedos nos seus longos cabelos. Deixe-me falar para o seu coração. Suavemente.
Há três décadas, eu e você vencemos todos os prognósticos ruins. O bebê não viverá, e se viver terá sequelas; as chances são mínimas; você talvez não sobreviva a esta gravidez.
Sobrevivi, sobrevivemos.
Naquele dia 29 de março, às 22 horas, recebi você nos braços. Eu usava uma máscara. Uma doença inesperada, contagiosa, me dificultava a respiração e me impedia de amamentar você, de beijá-la como eu tanto desejei. Minha primeira menina após dois garotos. Minha única menina.
E lá estava você, vitoriosa sobre o caos reinante. Uma sobrevivente.
O seu nascimento foi um triunfo. Você veio saudável, intocada, serena. Meu pequeno milagre em meio ao medo e à incerteza. Embalei você durante semanas, sussurrando palavras aladas, sonhando que houvesse algo mágico entre nós capaz de fazer você sentir meu amor atravessando as luvas de borracha e máscaras que então eu usava.
Restava a canção da Borboleta para embalar seu corpinho frágil.
Borboleta pequenina saia fora do rosal
Venha ver quanta alegria que hoje é noite de natal
Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira
Ando no meio das flores procurando quem me queira
Você cresceu o suficiente para eu ouvi-la dizer desde sempre que seria médica. Esse prêmio também não veio barato. Foi conquistado à custa de muitos sacrifícios no altar dos estudos e das horas insones. E onde estava você recebeu a notícia da aprovação? Num hospital, soro na veia, rosto molhado de suor e lágrimas. Suas vitórias parecem ter lugar certo para ocorrer.
Este é o seu terceiro momento de prova. Tenho acompanhado – com os dedos da angústia me comprimindo o coração – os relatos dos outros médicos no mundo inteiro. Aqui, aí, em toda parte. Exaustos, vendo a morte de perto, também eles amedrontados, igualmente vulneráveis, mas firmes. Estão na linha de frente, incansáveis, arriscando a própria vida. Os médicos (e todos os profissionais das equipes de saúde nos hospitais) são os heróis deste tempo assustador, esperança materializada em carnes e ossos. Eles e a sua arte médica representam a nossa chance de viver. Pequenas são as palavras para honrá-los.
Não sei como tudo isso terminará, mas me recuso a ceder ao medo paralisante ou a qualquer depressão. Acredito firmemente que que seus cuidados e conhecimentos vão preservar a sua vida e salvar a de outros brasileiros.
Este é o terceiro grande desafio de sua curta vida. Faça valer a sua tradição de superar adversidades, de erguer-se vitoriosa quando tudo em volta é caos.
Cuide-se bem. Seja corajosa e atenta. Confio em você, confio nos seus bravos companheiros de profissão.
De longe meu olhar te segue, pleno de amor e orgulho pela arte que você escolheu.
Com o amor de sempre,
Mamãe
P.S. Você sabe se sal de lágrimas estraga teclado? É que caíram várias aqui no notebook. São de saudade e de amor. Desse amor que nos une e que é maior que tudo o que vive neste planeta azul que agora aprende as suas duras lições.