Se há algo que brasileiro não cansa é de buscar um líder, guru, salvador, pai dos pobres, herói da nação. Choramingamos constantemente por um super homem que nos salve e proteja. Pode ser humorista, cangaceiro, macunaíma ou máquina de perpetrar sandices – o que importa é convencer a turba ignara de que determinado político é a salvação da lavoura. Às favas com a realidade: queremos mesmo é ilusão.
Acrescente-se duas gotas de torcida organizada, uma pitadinha de fanatismo herdado, quatro xícaras de autoritarismo e a receita está prontinha: todos se matando para defender o político convertido em ídolo, santo incorruptível, nova divindade das terras brazucas.
O populismo é um fenômeno mundial, reconheça-se. Na vizinha Venezuela a fome grassa, o desabastecimento campeia, não há remédios e a população é assassinada sem piedade nas manifestações que tomam as ruas. Mas nada disso importa para os que insistem em defender o governo de Nicolás Maduro. Repetem o apoio outrora dado a Mussolini, Mao, Franco, Stalin, Hitler, Castro, Vargas, Peron, Videla, Pinochet e outros que souberam enredar as almas sensíveis nas teias do populismo. Um nível de alienação não muito distante do que vemos hoje, quando as redes sociais e as ruas são tomadas pelo apoio cego a políticos.
Voltamos ao Brasil atual. O que dizer dos que usam o teclado para atacar vorazmente os adversários de seus ídolos? Como classificar as ameaças explícitas aos que pensam diferente? A militância enxerga seus políticos de estimação como gigantes e campeões da verdade. O mito do herói-presidente renasceu forte no terreiro do sebastianismo desde a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva. Consolidou-se no governo de Jair Bolsonaro.
Sem tais santos de pés de barro ocupando os altos cargos da República, tem-se a impressão que o tecido social brasileiro se esgarça e o cidadão confuso imagina que a democracia está ameaçada ou sitiada. Os candidatos a heróis, por sua vez, fazem alta ideia de si mesmos. Apresentam-se sempre como diferenciais, abusam dos slogans salvacionistas, louvam a si mesmos como modelos de conduta. E, não raro, vestem a capa dos perseguidos, convertendo-se aos olhos do povo em vítimas injustiçadas ou perseguidas pelo status quo, pela imprensa, pelos inimigos reais ou imaginários – um papel que todo populista, convenhamos, desempenha com maestria.
Fascistas! Comunistas! Golpistas! E segue o bonde da história brasileira, lotado de termos usados com leviandade ou desconhecimento e de adjetivos fáceis, que não exigem reflexão.
Pior do que os homens simples arrastados para este engalfinhamento coletivo são os supostos esclarecidos que oferecem em sacrifício a capacidade de pensar. Estes entregam o ceticismo numa bandeja, docilmente abrem mão da reflexão mais básica e engolem a versão rocambolesca com alegria. Fartam-se em um banquete de mediocridades.
Ignoram, por exemplo, as contradições em atos e discursos que incriminam o ex-presidente Lula, e não se incomodam em vê-lo atribuir à falecida esposa ou a amigos a responsabilidade por vários ilícitos de que foi acusado. Nada disso importa diante de um Lula santificado, portando uma suposta cornucópia de socorro aos desfavorecidos.
Com Bolsonaro ocorre exatamente o mesmo fenômeno. Não há agressão verbal, frase infeliz, decisão inábil ou gesto temerário que faça seus defensores recuarem em um apoio cada vez mais próximo do fanatismo.
Essa imagem hipnótica do político-herói se intromete nas relações pessoais so cidadão. Senta-se à mesa com o homem simples e com o intelectual, adormece nos seus travesseiros, partilha de suas refeições. E, consequentemente, abate amizades, pois antes corroeu o bom senso. Resta a fúria que ruge.
No Brasil, usar palavrinhas mágicas num palanque é catapulta para se tornar herói e garantir certificado de ética. Basta algum carismático pronunciar as expressões que determinado segmento deseja ouvir e já pode se considerar semicanonizado.
O fetiche da vassalagem que idolatra o suserano tem efeito avassalador sobre o nosso povo. Ao menor sinal, a turba se une, sem exame aprofundado da situação, e voilá: cenas de fanatismo que impressionariam até os deuses da publicidade.
Busco explicações para tal comportamento. Acho-a em Carl Sagan num texto famoso: o dragão na garagem.
Começa com a frase “Um dragão que cospe fogo pelas ventas vive na minha garagem”. Opa, oportunidade única de descobrir que dragões existem! Mostre-me! – diz o interlocutor.
O dono do dragão o leva até a garagem. O amigo vê uma escada, latas de tinta vazias, um triciclo, mas nada de dragão.
Onde está o dragão?
Oh, está ali. Esqueci de lhe dizer que é um dragão invisível.
A partir de então, todas as tentativas de provar a existência física do dragão esbarram em desculpas. Não se pode espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas porque o dragão flutua no ar. E usar um sensor infravermelho para detectar o fogo? Ah, o fogo invisível do dragão não gera calor… E borrifar o dragão com tinta para tomá-lo visível? Boa idéia, mas o dragão é incorpóreo e a tinta não vai aderir. E, assim por diante, o dono do dragão se opõe a todo teste que seu interlocutor propõe, valendo-se de uma explicação especial. O que se exige é que se acredite no dragão invisível, que não se questione sua existência.
O dragão não faz parte das preocupações do pensamento lógico-racional. Ele existe por crença, fé desassombrada e inabalável.
Sagan observa que a mágica só funciona porque desfruta da cooperação tácita entre o público e o mágico. Ou seja, abre-se mão do ceticismo. Para compreender a mágica e expor o truque é necessário que a platéia pare de colaborar. A adesão voluntária à crença cega é que dá o tom nesse mundo de ilusões.
A existência de políticos como heróis é o dragão na nossa garagem. São eles os prestidigitadores-chefes de um reino mágico cuja platéia não quer parar de colaborar.
Achei o dragão na garagem um exemplo excelente! Obrigada por emoldurar e expor tão bem o fanatismo!
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Sensacional!
Tradução impecável do povo brasileiro em relação aos seus políticos.
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Tenho vários amigos e pessoas que admiro que alimentam e cuidam com carinho dos seus dragões na garagem. Texto esplêndido!
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Lúcido, verdadeiro. Irretocável!! 👏👏👏👏👏👏
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