Arte sempre foi meu refúgio. Um lugar especial para estar. Quarto, cobertor e fresta por onde se espia o teatro de toda vida.

Ela pulsa em mim desde sempre, em notas, letras, tintas e mármore. Embala minhas horas de sombras e enche de risos os dias.

Eu a queria mais perto, mais junto. Falei da minha solidão.

Ela se compadeceu.

Disse que cada fio de sua vasta cabeleira era um de seus filhos a vir ao mundo.

“Toma este aqui, mais clarinho”. Ele flutuou bem devagar, até pousar sobre o meu coração. Aconchegou-se um pouco e dormiu por muitos meses.
Eu o acolhi e embalei, dei-lhe ossos, músculos e claros olhos azuis. Numa manhã de abril, abriu os olhos e nos vimos pela primeira vez. Amei-o sem medida. Instantaneamente. Dei-lhe meu próprio leite e cantei berceuses.

Anos depois, sorria com dentes de leite enquanto tamborilava num piano. Eu usava um vestido engraçado, de dragãozinho, que ele pensava ser a roupa mais bonita do mundo.

Cantamos juntos com os Beatles e com o Mozart. Houve silêncio quando ouviu a Gran Partita.

Dançou a marcha militar, do Schubert, usando chapeuzinho de papel. Brincou com os cavaleiros do Zodíaco e no castelo do He-man ouvindo óperas e John, Paul, George e Ringo.

Levei-o para ver filmes, assistir a montagens (algumas ruins) de Shakespeare, e ouvir os álbuns do Queen. Vimos desenhos na TV, visitou redações de jornal e brincamos com flocos de algodão nas ruas de Brasília.

Descobriu os mangás japoneses e lhe veio uma enorme vontade de desenhar. Foi apresentado ao Vincent, ao Leonardo, ao Lautrec. Gostou de todos.

Aperfeiçoou a técnica em longas noites de estudo. Anos e anos a aprender.
Valeu a pena cada gota de suor que derramou. Hoje constroi belezas de vários tipos. E de suas mãos saem joias que me encantam. Ainda é a minha pessoa favorita para falar de livros.

Desde aquele 18 de abril, um fio de arte veio morar comigo. E a felicidade que trouxe eu jamais conseguirei traduzir.

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Ilustração: Tarcisio Ferreira. Sem título. 2020.