Este confinamento aos poucos me mata. Sinto que meu corpo decai e a irritação estende suas unhas na minha direção. Tento escapar, mas a apatia me vence.

Toda a minha liberdade foi tolhida de uma vez, sem aviso ou preparação. Não é da minha natureza viver trancada. Olho para essas paredes que se fecham como garras em torno de mim e desejo pô-las abaixo. Prisões que jamais pedi.

Eu e meus vizinhos partilhamos o isolamento forçado. Não temos contato, mas as paredes são finas o suficiente para que eu os escute. De madrugada ouço os ruídos da vizinha a andar de um lado para outro. Sem sossego, agoniada. Adivinho que deseja sair, sentir o sereno sobre a cabeça. No compartimento ao lado há os suspiros tristes de um outro. Ele levanta e bebe um pouco de água. Talvez queira companhia. Vive só. Muitos de nós precisam de remédio para suportar a ansiedade e este medo que nos devora. Sei que os outros também ouvem o meu desconforto.

Preciso fugir, andar lá fora, correr um pouco, quem sabe. Não posso. Já não é possível sair à hora que desejo. Sou impotente, minha vontade de nada vale.

Nestes tempos estranhos, o que mais sinto falta é a liberdade. Às vezes rebenta no meu peito a vontade de pegar sol na cara, de olhar o horizonte, de voltar a ser dono de mim. Mesmo que por alguns poucos minutos.

Em silêncio choro, apesar de ser um adulto. Ou uivo de raiva. Não sei viver neste cenário desconhecido. Esmagado pelas novas regras, sinto a vontade de gritar, morder, roer a corda.

Nunca havia percebido, antes, como as pequenas coisas da minha rotina eram tão essenciais. Vento nas árvores, uma flor minúscula pelo caminho, grama úmida sob os pés. Quero vê-los de novo, sentir ainda uma vez esses prazeres mínimos, coisas banais do cotidiano.

Os dias passam e já decorei cada detalhe deste palmo de chão em que habito. Conheço cada centímetro, espiei cada fresta.

Noite ou dia, tudo igual. Repito os mesmos gestos. Acordo, mastigo, bebo água, olho pra fora, durmo de novo. Nada me alegra. Um tédio invencível se deita sobre os meus dias.

Por vezes tento fazer algo novo no espaço apertado, mas sucumbo à vadiagem e ao desânimo. A vida escoa sem sentido à margem do mundo que me parece tão longe, embora esteja logo ali, atrás da porta, da janela, da grade. Eu o vejo.

Já não resisto. Deixo uma raiva surda se apoderar de mim quando penso nos meus parentes distantes, na minha gente comendo junta, barulhenta. Gosto de silêncio, mas não deste – pegajoso e incômodo.   

Ficar afastado dos amigos devora o que me resta de bom humor. A frustração de estar isolado, longe de todos, pesa sobre mim. Acho que já nem lembro mais como é contato físico. De pele, de pelos, de calor e toque.

O entregador de comida, o médico, os funcionários do lugar em que vivo  ajudam a manter a minha vida. Eu deveria ser grato. Não consigo.

Preciso afastar a depressão que me espreita, mas ando sem forças.

Sou um bicho nesta jaula.

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O texto que você acaba de ler poderia ser sobre alguém deprimido nesta quarentena. Eu ou você. Mas é sobre animais trancados em zoológicos.

Compartilhamos com os bichos o prazer da liberdade, as alegrias e conflitos do convívio com os da nossa espécie. A roda da vida, em sua plenitude, faz parte de nossa natureza comum.

Da mesma forma, a privação ou restrição da liberdade nos irmana em seus inegáveis impactos psicológicos. Solidão e isolamento põem sobre todos nós o selo de uma visível tristeza e um stress palpável. Comprometem nossa saúde.

O termo zoocose, cunhado em 1992 por Bill Travers, hoje designa animais  selvagens que em cativeiro exibem comportamentos anormais, como depressão e automutilação. Psicose animal. É tratada com medicamentos de tarja preta.

Não é para menos. Observe abaixo as imagens da fotógrafa Ana Zinger. O contraste entre a amplidão das paisagens da África e as gaiolas escuras e tristes dos zoológicos brasileiros traduz com perfeição o impacto do cativeiro sobre o bem-estar mental e físico dos animais.

Bichos que na natureza percorreriam milhares de quilômetros são confinados a espaços acanhados, onde definham solitários até o dia em que a morte os liberta. Tudo para que possamos ter diversão aos domingos. Não precisamos de tal degradação.

Ainda que os novos zoológicos e aquários tenham espaços muito amplos, aleguem que simulam o habitat natural e se valham de técnicas que estimulam os animais, jamais rivalizarão com a natureza.

Não há piscina com cloro capaz de competir com o oceano. Saltos acrobáticos de orcas obedientes são conseguidos à base de benzodiazepínicos. Rainhas dopadas para entreter as visitas.

A exploração de animais para fins de exibição é fenômeno planetário. Dos xeques árabes e seus tigres domésticos aos macacos dançarinos da Indonésia, passando por grandes felinos dopados para turistas fazerem fotos, o mundo é pródigo em exemplos. O desfile de horrores segue com zoos particulares, pássaros engaiolados, circos, falsos santuários de proteção animal, shows aquáticos. Tudo isso já passou da hora de ser banido do nosso cotidiano.

O obstáculo é o de sempre: money talks, claro. Há um comércio lucrativo por trás disso tudo. O tráfico de espécies selvagens mobiliza anualmente US$ 26 bilhões no mundo. E os mais de dez mil zoológicos e aquários espalhados pelo planeta faturam quase US$ 20 bilhões/ano.

Por onde começar a atacar o problema? Pelos zoológicos, creio.

Zoos só se justificam como centros de pesquisa em medicina veterinária, preservação de espécies ameaçadas ou acolhimento de animais que não conseguiriam sobreviver na natureza após mutilações e longo tempo de cativeiro.

A pandemia de covid-19 reacendeu o debate sobre a  conveniência desses lugarem prosseguirem, uma vez que, com as cidades em quarentena e o turismo suspenso, vários zoológicos se vêem na iminência de fechar. Alguns, que não contam com reserva de recursos financeiros, começam a cogitar eutanásia em massa dos animais. Uma tragédia.

Recorro a uma antiga história.

Ocorreu na Índia, em 261 a.C. quando o imperador Ashoka venceu a sangrenta batalha de Kalinga. Os combates resultaram em mais de 100 mil mortos e tiveram um impacto profundo sobre o soberano, que se converteu ao budismo e dedicou o restante de seus dias a cultivar a paz e a virtude. Suas políticas públicas foram gravadas em grandes pedras e pilares que ainda hoje estão espalhados pelo território indiano. Esse código de leis prescrevia, entre outras, ética obrigatória para os homens públicos e compaixão com todos os seres humanos e animais. Morte desnecessária, mutilação, sacrifício e sofrimento animal eram proibidos. Já os cuidados e respeito a outras espécies, vegetarianismo e a construção de hospitais veterinários eram estimulados. O imperador tornou-se tão grandioso que, dois milênios depois, inspirou os líderes que elaboraram a Constituição da Índia. A Ashoka chakra, com suas 24 virtudes, está no centro da bandeira indiana.

Tal como Ashoka, poderíamos tirar lições e novos roteiros a partir de uma catástrofe. Neste caso, a pandemia que espalhou cadáveres pelo nosso mundo e nos obrigou a experimentar o mesmo isolamento que impomos aos bichos nos zoológicos do planeta.

A Covid-19 pode ser a nossa batalha de Kalinga, nosso ponto de inflexão. Um convite silencioso da terra violada para que, depois de chorarmos nossos mortos, se inicie um tempo de mais compaixão pelas outras espécies que dividem conosco o planeta.

Até porque, quando tudo isso passar, olhar para um animal aprisionado será enxergar a nós mesmos.

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“A suposição de que os animais não têm direitos e a ilusão de que o tratamento que damos a eles não tem significado moral é um exemplo positivamente ultrajante da rudeza e da barbárie ocidentais. A compaixão universal é a única garantia de moralidade”. Arthur Schopenhauer

GALERIA DA FOTÓGRAFA ANA ZINGER