Esta série de viagens à Amazônia não é feita de textos com dicas de hotéis, passeios e roteiros gastronômicos. São despretensiosas narrativas literárias, que mostram os locais sob perspectivas essencialmente culturais. Um jeito despojado de contar boas histórias – todas reais. É a crônica de quem viaja de forma não convencional e traduz a vida dos anônimos que moram às proximidades dos grandes circuitos turísticos e só aparecem nas fotografias quando se cola neles o adjetivo “exótico”.
O autor das histórias, Vinicius Conceição, alia momentos de pura diversão e questões sociais capazes de ensejar boas reflexões.
O autor explica que a ideia da viagem “surgiu em uma mesa de bar, sob as bênçãos da melhor dupla divina da antiguidade: Baco e Dionísio”, o que é determinante para que o relato se dê no mesmo tom e sob o olhar enternecido de Bukowski e Hemingway – devotos dos mesmos deuses.
Divirta-se. É tudo verdade, mas também é literatura.
Crônicas de viagem – A Amazônia segundo Baco
Vinicius Conceição*
Aviso aos navegantes!
A viagem que vou relatar surgiu em uma mesa de bar, sob as bênçãos da melhor dupla divina da Antiguidade: Baco e Dionísio. Portanto, o relato se dará sob o mesmo tom. Importante dizer, também, mais três coisas:
1. Adoro generalizações e reducionismos e, ao contrário do que fala o politicamente correto, estereótipos existem sim. Assumir sua inexistência implicaria o fim das ciências sociais pois, se vivêssemos da casuística, nenhuma discussão sobre padrões socioculturais seria válida. Enfim, não vou me explicar mais, a viagem é minha, o texto é meu, gosto de estereótipos e eles vão percorrer o texto.
2. Adotei pseudônimos para a maioria dos personagens, primeiro porque os ofícios de meus amigos exigem reputação ilibada e não permitem a divulgação de suas extravagâncias sociais. Segundo porque estudo Direito e tenho medo de processos de terceiros.
3. São impressões pessoais e que podem não representar a visão que meus dois companheiros de viagem tiveram, assim como de pessoas que fizeram uma viagem similar.
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Crônicas de viagem I – A Amazônia segundo Baco
Era pré-carnaval, aproximadamente duas horas da manhã, quando eu e Pimmy deixamos compulsoriamente o bar em atinência à lei distrital de restrição à diversão. Pimmy merece uma apresentação formal: é um aposentado fenômeno folclórico da noite brasiliense, em razão de seus memoráveis feitos, tais como seu envolvimento por uma noite com a antiga professora de geografia; ou quando, bêbado, escalou a casa de meu ex-sogro, despencando de uma altura de 5 metros e destruindo a churrasqueira em construção.
Sentado sobre o medidor de água do prédio, Pimmy, já de olhos baixos pelo consumo do danone, lembrava saudosamente da viagem que fizemos em 2014. Percorremos Uruguai e Argentina, cruzamos idiotamente a fronteira do país hermano com a Bolívia só para carimbar o passaporte e voltamos. Sim, fomos idiotas, pois o trâmite fronteiriço nos tomou quase um dia de viagem. Pimmy comentava que daria início ao seu doutorado em Porto Alegre e completava, nostálgico:
– Seria massa se a gente continuasse a viagem de onde paramos na Bolívia.
Concordei, ainda mais porque no norte da Argentina e nas horas que ficamos na Bolívia vimos uma realidade completamente diferente da que vivenciamos na região sul da América Latina. Realidade indígena (em termos futebolísticos: no norte da argentina não existem Messis, somente Agüeros e Di Marías), subdesenvolvida e oculta, que gostaríamos de explorar mais a fundo.
Pensando no caminho que deveríamos fazer, concluímos que, assim como os argentinos não conhecem e até escondem o norte do próprio país, nós fazemos a mesma coisa com o nosso. Assim, decidimos que iríamos conhecer a Amazônia brasileira e entraríamos pela fronteira terrestre do Acre com o Peru, de onde desceríamos para a Bolívia. E como chegaríamos até o glorioso estado brasileiro que representa a maior conquista recente da nossa diplomacia? De barco! Em uma viagem de 4 dias e 5 noites, que sairia de Manaus e chegaria até Porto Velho, de onde tomaríamos um ônibus rumo a Rio Branco.
Eleito o roteiro, vale lembrar que, apesar de não ser literatura de viajantes do século XVI, esta crônica também não é nenhum guia com relatos detalhados de preços, diárias, análises das instalações, “o que fazer em tal lugar?”, “onde ficar?”, etc. Portanto, se você tem perguntas como:
-“Ôu, muito doida essa tua viagem. Quanto tu gastou?” Não sei.
-“Ôu, tu lembra o nome dos hostels que tu ficou?” Não.
-“Ôu, tu lembra das companhias de ônibus, barco, balsa, vans que tu viajou?” Não.
-“Ôu, tu lembra o nome de uns lugares bons pra comer na Bolívia?” Não. Eles não tem isso.
Se esse for seu caso, recomendo que leia os sites abaixo. Dá pra fazer um roteiro bem detalhado e programado, coisa que não fizemos:
www.tripadvisor.com e www.mochileiros.com.br e www.lonelyplanet.com
Nossa jornada Amazônia-América Andina, como bem disse meu amigo Flores sobre uma viagem que fizemos em 2010 com o objetivo de saciar “lo fuego de una pasión de verano” que ele sentiu por uma argentina, foi um verdadeiro “cavalo do índio não selado”. O que significa isso? Não programamos nada, não reservamos hotel, não calculamos gastos e não lemos qualquer blog. Tudo o que fizemos foi comprar uma passagem de ida para Manaus, uma de volta de Santa Cruz de La Sierra para Brasília (comprada 15 dias antes da partida) e ler um power point elaborado pelo Pimmy com fotos dos lugares que poderíamos visitar.
Assim, eu e Gomoto chegamos a Manaus, na manhã de sexta, algumas horas antes de Pimmy, e tínhamos de comprar as passagens do barco. A única informação que levamos de Brasília era a de que o barco para Porto Velho saía uma vez por semana, às sextas-feiras, e não vendiam bilhete antecipado: somente na hora. Pegamos o ônibus no aeroporto rumo ao porto de Manaus e, quando chegamos, nos deparamos com aquela situação caótica tão peculiar às regiões portuárias.
Fui criado na seca de Brasília, mas nasci em Belém e passei inúmeras férias nas escuras águas amazônidas, o que faz de mim um boto do cerrado. Por isso, aproveito o espaço para dar as linhas gerais de uma zona portuária para meus amigos candangos que pagam 160 reais em uma praia artificial com areia vinda de Goiás para que possam pensar que o Lago Paranoá é um mix de Saint-Tropez com Leblon.
A zona do porto, historicamente, é a zona da decadência, da prostituição, dos bêbados, dos golpes sorrateiros. A zona portuária (sem trocadilhos) já foi motivo de muita literatura e cinema, além de uma quase guerra entre Brasil e Inglaterra no século XIX, quando dois marinheiros ingleses bêbados arranjaram briga com brasileiros por causa de mulheres. (Questão Christie).
É um fluxo absurdo de testosterona: pessoas de passagem, sem nenhum vínculo com a cidade ou temor do poder público, querendo a diversão mais suja e imediata. Meu avô é o portuário mais antigo do Brasil em atividade, 50 e tantos anos de cais, e lembro dele se despedindo da minha finada vovó Dinda ao ir trabalhar. Logo que virava as costas, ela dizia:
– Não dá nem pra desejar bom trabalho pra esse velho. Só Deus sabe o que acontece nessa boca de cais.
Ficava com pena do Jerrynho, porque, além dele ser a cara do Gandhi (serião!), nunca seria capaz de fazer algo minimamente errado.
Após essa breve explanação sobre a decadência portuária, voltemos à viagem. No meio desse caos portuário era normal a presença de gringos perdidos, com roupas de cor pastel, rostos vermelhos ensebados, olhando deslumbradamente para a mais fina flor do subdesenvolvimento. Seguimos para a bilheteria oficial do porto:
– Bom dia, gostaríamos de comprar a passagem do barco que sai para Porto Velho às 18h de hoje.
– Barco pra Porto Velho só sai na terça – respondeu a funcionária.
– E agora, moça? Não podemos ficar aqui até terça para só chegarmos em Porto Velho no sábado da semana que vem…
– Vocês podem arriscar comprar no paralelo, lá no cais.
Fomos ao cais, atrás do Mercado. Há dezenas de banquinhas que parecem os ambulantes que vendem cerveja nos happy hours da UnB, mas que funcionam como ponto de venda das passagens para os milhares de barcos e destinos que dali saem.
Eu e Gomoto fomos abordados logo de cara pelo primeiro vendedor, o qual nos disse que a passagem custaria R$ 250,00 (50 reais a mais do que constava na nossa única bibliografia oficial: o ppt elaborado pelo Pimmy). Antes de falarmos qualquer coisa, ele começou a preencher uns papéis surrados que tirou do bolso e que afirmava serem as passagens, ao mesmo tempo que enaltecia as qualidades do “motor”, maneira como chamam os barcos.
Gomotozinho, entretanto, notável representante do meio negocial, responsável pela administração das minhas economias que irão garantir a conclusão de meus estudos jurídicos, em um rompante decidiu largar o primeiro mercador e pesquisarmos mais. O vendedor desesperado ofereceu desconto de 30 reais (fato que aumentou ainda mais a desconfiança de se tratar de golpe), enquanto um velho desdentado fazia coro junto de uma senhora nativa e fisicamente opulenta:
– Vocês deviam comprar logo com o fulano. Vão acabar sendo assaltados por aí.
Mesmo assim, segui o tino de Gomotozinho e adentramos o mercado municipal. Pedimos ajuda a um guarda municipal e a uma dupla no quiosque de orientação ao turista. O guarda falou que era melhor comprarmos na bilheteria oficial do que com o cambista, mas, antes de explicarmos a ele que não existia essa possibilidade, populares gritaram “Pega ladrão!” e ele saiu em disparada. Então recorremos aos dois suados funcionários que, com os olhos fixos no celular, não nos diziam nada de novo. A essa altura surgiu um ser oferecendo passagens (provavelmente nos seguiu) pelo preço de R$ 250 também. Dissemos que o primeiro cambista havia nos oferecido a passagem por R$ 210,00 (sim, menti. Afinal, se era para arriscar levar um golpe, gostaria de viver com a ideia de que pelo menos lutei contra meus estelionatários em uma vã tentativa de contragolpe).
Ele concordou com o preço, mas ainda estávamos muito desconfiados. Repetia incessantemente que era seguro, que era trabalhador, que o serviço era limpo, etc. Chegou até a exibir a filha de 8 anos, com uniforme de escola, para provar sua idoneidade. Gomotozinho não gostou muito da ideia, mas acabamos comprando a passagem dos “paralelos”. Isso tudo em frente ao quiosque de auxílio ao turista do governo do Amazonas – gente que deveria entregar a própria vida para que o turista não cometesse um ato de loucura desses, mas, em vez disso, todos estavam hipnotizados pelo ~ZAP-ZAP~ (aproveito aqui a oportunidade para externar todo o meu ódio contra a pior palavra inventada em língua portuguesa no triênio 2013-2020).
Restava-nos conhecer o barco e atar as redes logo cedo, pois queríamos garantir um lugar na parede, onde pudéssemos focar nossa atenção em somente uma direção para a proteção de nossos pertences durante a noite. O vendedor nos conduziu até o barco e começamos a nos acalmar, pois a venda das passagens parecia caótica, mas o porto era bastante moderno. Porém, chegando na hora da conferência das passagens e de entrar no barco, a oficial portuária olhou em sua lista e decretou:
– Não tem nenhum barco com o nome “PEREIRA IX” atracado aqui.
O vendedor começou a fazer ligações para o chefe, perguntando onde estava o barco (ainda hoje me impressiona como alguém perde um barco gigante, mas ok!) e é informado que estava em outro porto. Ele fala pra filhinha esperar ali mesmo, nos coloca dentro de um loto-táxi (um táxi normal, mas que funciona como lotação por 4 reais. Até agora não sei como faz pra ativar o modo táxi e o modo lotação) e vamos em direção ao outro porto. Não lembro o nome, mas o lugar era horrível, o taxista falou que era “zona vermelha” e, se a situação era caótica no porto moderno, nesse era 1.832.012.739.128.391 vezes pior.
O porto parecia ilegal e, quando chegamos ao barco, os estivadores embarcavam motos, carros, cimentos, sacos, o que tinha uma cara fortíssima de contrabando. Nossas suspeitas aumentaram quando vimos que, no andar dos passageiros, havia menos de dez redes atadas, ao contrário do mundo de redes que sempre vemos nas fotos.
O quadro geral abateu a moral da tropa, não mais pelo medo de golpe, mas temendo por aquilo que nossas mamães mais prezam nesse mundo: nossas vidinhas. Maaaaaaaaass, já tínhamos pago 200 reais de passagem, agora era confiar nossos prováveis futuros brilhantes às mãos do graduadíssimo Comandante Pereira. Isso me faz pensar na lógica humana: “Ah, agora que eu paguei 200 reais, tenho que ir até o final e arriscar minha vida na mão de possíveis contrabandistas manauaras. Não rola de desistir mesmo!”.
Quando fomos atar nossas redinhas, o cavalo do índio atacou novamente e constatamos que não tínhamos a corda necessária para amarrá-las. Decidimos almoçar, comprar cordas e esperar o Pimmy, que chegaria em instantes. Comemos um peixe inteiro cada, com guaraná Tuchaua (TOP!) e em meio a mendigos que, ao invés de pedir dinheiro, pediam farinha (!) e colocavam num saco para algum propósito desconhecido. No início pensei que era pra revender, mas no barco constatei que as pessoas no norte do Brasil podem se alimentar única e exclusivamente de farinha.
Em um ato de desapego material, natural àqueles que pressentem o fim da vida diante de um quadro desolador como aquele, deixei meu celular carregando com um estranho e me despedi de alguns entes antes da partida. Menos da mamãe, para a qual demonstrava total controle da situação. Esta só se avisa quando tudo dá errado; nunca os atos preparatórios do erro.
Pimmy enfim chegou. Uma onda de felicidade contagiou o batalhão: compramos nossas cordas, mantimentos de sobrevivência para os quatro dias e cinco noites (dois pacotes de Club Social e dois Passatempos – para os três) e conhecemos por fora o Teatro Amazonas (bonito, mas o Theatro da Paz, em Belém, é mais, assim como tudo no Pará é melhor que tudo no mundo).
Voltamos ao nosso barco, o qual mudou completamente: já estava tomado por redes. Ficamos mais calmos com todas aquelas pessoas, porque deixou de parecer um barco de contrabando e já se assemelhava mais àqueles típicos barcos superlotados da Amazônia que costumam afundar de vez em quando.
Porém, além de termos perdido o tão desejado espaço na parede para a segurança contra os gatunos da noite, não sabíamos dar os nós nas cordas das redes. Fomos ridicularizados por populares do sexo feminino: “Como é que pode unx homenx dessex não conseguirem dar nó em rede?”. Suplicamos a elas que levantassem por 5 minutos para que encaixássemos nossas redes entre elas e que nos ajudassem a dar o nó. Elas o fizeram de má-vontade, pois só levantavam da rede para comer e tomar banho.
Gomoto ainda deu início a pequena discussão em uma disputa por ponto de rede com um elemento de cabelo oxigenado, que chamava as pessoas pelo vocativo “considerado” e que, com 96,5% de certeza, já pagou suas dívidas com a sociedade por meio do cumprimento de pena em regime fechado.
Tudo arrumado, mochilas debaixo das redes, estávamos prontos para a viagem. O barco tinha três andares: no primeiro ficavam as cargas, no segundo as redes (aproximadamente 100 pessoas) e o refeitório, no terceiro a “área de lazer” (um bar, uma churrasqueira, um som que nunca desligava, uma televisão e a vista para o rio).
Tomamos uma sopa comunitária, fomos pro andar de cima, abrimos uma Itaipava quente dos vencedores, apreciamos a paisagem da Amazônia selvagem, terminamos a Itaipava e, com 20 minutos de viagem, perguntei pro Gomoto: “Tá. E agora? Que que tem pra fazer?”
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Foto principal: Manoel Neto
Que crônica sedutora, leve e profunda ao mesmo tempo, deliciosa de se ler. Comecei e não consegui parar. Parecia feita de palavras coloridas. Parabéns a esse escritor, cujo futuro nem precisa ter bola de cristal para saber. Espero poder seguir suas crônicas tão bem escritas, maravilhosas.
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Maravilhosa essa crônica, comecei a ler não consegui parar. Parabéns ao escritor.
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Você tem a sequência das “Crônicas de viagem I – A Amazônia segundo Baco”, tipo as Crônicas de viagem II?
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