Pois tu és como um Deus, princípio e fim. Florbela Espanca
Então ele sai. Está apressado: trabalho, terno, aulas, petições. Mostra-me textos em que discorre sobre teses que mal consigo imaginar do que tratam.
Houve um dia em que falou de uns alunos que o chamavam de tio. Faz tanto tempo. De vez em quando eu espreitava enquanto lia: teorias da História e do Direito que tinham como trilha sonora algo lançado pela indústria fonográfica entre a década de 30 e os dias de hoje.
Seu ouvido democrático ouve Elvis, samba, tango de Gardel, Mozart, marchinha de carnaval dos anos 40, discursos, canções do ABBA, Dr. Dog, vassourinha de Jânio Quadros e trilha sonora de Sessão da Tarde, sem falar nos atentados perpetrados em disco na década de 80 e todas as bandas alternativas da Europa. Dele, Nadja já disse: “Se esse menino morrer, não vou conseguir mais ouvir música alguma, pois tudo me lembra ele!”. Se esse menino morrer – penso eu – leva consigo metade de minha alegria e a quase totalidade das minhas reclamações.
Inventivo é seu nome do meio. Dele nada escapa. Imita as pessoas com perfeição, escreve como poucos, trabalha e lê como se o mundo fosse acabar amanhã. E quando se dispõe a deixar fluir a veia criativa, não há quem resista.
Escreveu uma pequena série de crônicas de viagem pela Amazônia brasileira, Peru e Bolívia. Tinha apenas 22 anos e viajou com quatro amigos, quase sem dinheiro e em estilo franciscano. Dormiu na rede em um barco amazônico, na casa de indígenas bolivianos, subiu a pé 1.200 metros de escadaria em Machu Picchu, correu atrás de lhamas e fez pausa na imensa brancura dos salares andinos. No texto, se mostrou inteiro, com sua ironia fina, imbatível bom humor e olhar aguçado. No meio da viagem, uma borboleta amazônica pousou-lhe no dedo do pé – e isso define sua alma valente e delicada.
Às vezes acho que fica imaginando formas de me fazer rir cada vez mais alto. Como quando se finge de retórico grego para impressionar a mim e a faxineira. Ou quando abre a porta da rua, tocando trombeta e anunciando a si mesmo: “O rei chegou! Preparem o almoço do rei!”. Ou quando inventou uma lenda completa para explicar o nascimento do loiro irmão mais velho, na qual – para dizer o mínimo – eu havia sido seduzida por um certo Sergeant O’Hara, fictício americano das Forças de Paz da ONU.
Ele não sabe, mas o amor que lhe tenho é tecido de fios que demorei a identificar. Quando chegaram a mim essas fibras de sentimento, não as conhecia, pois eram diferentes de tudo o que eu havia experimentado. Amor feito de estranhamento e perguntas, uma espécie de minueto emocional, com passos de reconhecimento, mãos que se tocam, afastamento e aproximação, cautela e temor. Ele me intimida, eu o amo. Eu o intimido, ele me ama. Por vezes nos encaramos como desconhecidos. Outras vezes como se feitos da mesma lava. Dois universos a se tangenciar, entre o temor do choque e a intensidade do sentimento. Fascinante e desafiador.
Não há ninguém igual a ele nesta minha vida. Nem haverá.
Quando vem o inverno da saudade e o desejo perto, fecho os olhos e o revejo saindo de casa em direção ao trabalho. De repente… volta, tira os fones de ouvido (sabe Deus o que estará escutando) e sorri simplesmente: “Tchau, Billie!”. Duas palavras e diante de mim já não vejo aquelas pernas tão compridas e um rosto barbeado. Surge um garotinho redondo, com olhos de açúcar, que me corta a respiração.
Uma borboleta me pousa no pé enquanto o barco segue.
E é assim que, instantaneamente, a primavera chega ao meu mundo.