O Brasil rompeu hoje a marca de mais de mil mortes diárias por Covid-19. O país registrou 1.179 novos óbitos nas últimas 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. Ao todo, são 17.971 mortos por coronavírus e 271.628 casos confirmados.
Com isso, o país se tornou o terceiro do mundo com mais casos da doença, atrás dos EUA e Rússia, e o sexto com mais mortes.
Há dois anos escrevi o texto abaixo sobre o respeito aos mortos na “Ilíada”. Republico hoje, pois não há, por parte das lideranças políticas brasileiras, um sincero lamento pela tragédia que nos atinge.
Nas “lives” de hoje, os dois maiores ídolos políticos do país se alternaram na demonstração da indignidade que lhes traduz a alma. Estavam absorvidos demais com suas agendas para se ocuparem em dirigir uma singela mensagem de conforto aos milhares de brasileiros que perderam seu bem mais precioso.
Bolsonaro, rindo, disse que “quem for de direita toma cloroquina; os de esquerda tomam Tubaína”. Lula comemorou a pandemia, pois ela supostamente lhe daria razão: “Ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus para que as pessoas percebam que apenas o Estado é capaz de dar a solução, somente o Estado pode resolver isso”.
Eu me senti ultrajada.
O que se vê no Brasil não tem paralelo no mundo. A maioria dos líderes mundiais se desdobra para, em seus pronunciamentos, deixar claro que se preocupam e cuidam de seu povo. Adotam uma postura decente e solidária.
Não na nossa terra, onde a briga política assume mais importância que vidas humanas.
Faço questão de registrar essas duas frases infelizes para que nenhum de nós esqueça deste abismo em que mergulhamos, do medo que agora nos aflige, das lágrimas que derramamos neste período tão difícil.
Estas duas seitas de fanáticos – que não se intimidam perante a tragédia que atinge os nossos compatriotas – devem ser expurgadas das nossas vidas. Se nos restar algum amor próprio é o que devemos fazer: retribuir com desprezo a quem nos esbofeteou enquanto sofríamos.
O Brasil não merece esta gente indiferente à sua dor.
Demonstrem algum respeito pelos mortos e pelos familiares que choram!
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‘Um dos mais sagrados ritos gregos era o cuidado dedicado aos mortos. Na Ilíada, é notável o temor dos guerreiros de que seus cadáveres sejam ultrajados. Em várias passagens, herois ameaçam seus oponentes prometendo não permitir que eles tivessem ritos fúnebres nos quais seus familiares pudessem lamentá-los. “Ah! dêem meu corpo à fúnebre fogueira”, suplica Heitor, pouco antes de morrer, abraçando os joelhos de seu algoz, Aquiles. Este não se comove, ameaça dá-lo aos cães, e arrasta o corpo do príncipe em torno das muralhas de Troia. Os próprios deuses se movimentam, então, para dissuadi-lo da ideia de levar adiante ideia tão vil. Guiado por Mercúrio, o idoso pai de Heitor, Príamo, vai até Aquiles e suplica que lhe restitua o cadáver do filho, herói troiano. Beija as mãos do assassino do filho. Diante do gesto, Aquiles chora, contempla os cabelos brancos do velho e concede: “Ao luto devemos trégua”. Aquiles menciona o passado glorioso de Príamo, o auge de sua glória, e destaca que o velho perdeu tudo e está ameaçado por danos ainda maiores. Entrega-lhe o cadáver do filho e garante um prazo de onze dias para o luto e o funeral. Ao décimo segundo dia, concordam ambos em retomar a guerra entre gregos e troianos.
Milhares de anos se passaram desde que Homero escreveu o poema sobre a cólera de Aquiles, e ainda não aprendemos a fazer ligeira trégua para que os adversários possam chorar seus mortos antes que recomecem os combates que jamais cessam na nossa terra. Compaixão perante a tragédia alheia demonstra grandeza de alma. Mas, se nem isso for possível, o silêncio respeitoso já vale ouro. Há escárnio demais e leitura de menos nesse nosso Brasil.”
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Ilustração: Alexander Ivanov. Príamo implora a Aquiles pelo corpo de Heitor.
Seu texto , Sônia Zaghetto vem responder a uma pergunta q me faço há anos: Q espécie de ser humano passa indiferente às tragedias praticamente dizimam seus semelhantes ? Acho q sabemos e nem queremos admitir. Pior é qdo estes são líderes políticos. Líderes ? De quem mesmo ? Dos tolos ? Iludidos ? Ou dos cinicos ?
Q tristeza 😔
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“O Brasil não merece esta gente indiferente à sua dor.” Certíssima, Sonia!
Eu estou indignada!
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Intransponível à compreensão como chegamos a viver um momento de tamanha sucumbência moral.
Ontem, diante da dor, e da inexorabilidade das vidas ceifadas, dois facínoras deram uma mostra de sua crueldade , igualada em tamanho à burrice.
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Não tinha lido este texto e devo dizer que, apesar de ter passado algum tempo, eu ainda me sinto ultrajada por tudo o que aconteceu durante esta pandemia.
Eu perdi meu irmão para o Covid e nos últimos dias em que ele estava internado, eu escutava os números de mortos no jornal e pensava: Cada um destes mais de 2.000 mortos/dia (que era o número daquela época) está deixando quantas pessoas tristes e desoladas? Não se via um pronunciamento de luto da parte do líder do país, não que isso fosse mudar algo, mas pelo menos o respeito estaria envolto naquele mar de desespero. E eu também pensava: “Não são apenas números, meu irmão pode estar fazendo parte desta matemática terrível amanhã ou depois”.
Assim como eu, muitos ainda estão revoltados. Meu irmão se foi em junho/21, mas pra mim ele é inumerável e a minha dor e revolta é inconsolável.
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