As denúncias de abuso sexual envolvendo líderes espirituais, como o “médium” João de Deus, os “gurus” Prem Baba e Ikky, além dezenas de padres e pastores acusados de pedofilia ou assédio são lições importantes sobre a vigilância que é necessário manter sobre a própria mente, o corpo e os familiares mais ingênuos ou muito jovens.
É evidente que prestidigitadores se aproveitam de pessoas fragilizadas para desafogar seus instintos brutais. É óbvio que muitos se utilizam do ambiente religioso-espiritual para isso. É claríssimo que são pessoas que não têm limites ou freios que as impeçam de prosseguir avançando na satisfação de suas paixões primitivas.
Ao se locupletarem na carne alheia, esses abutres ferem suas vítimas, atingem as famílias destas e também lançam a sombra da desconfiança sobre a prática espiritual que a tanta gente faz bem. Após denúncias dessa natureza, de imediato surgem muitos bradando que a religião é veneno e que – repetindo Dawkins – mata mais que as guerras.
Sim, há milhões de vidas perdidas por conta de guerras religiosas, mas me parece da natureza humana o estado de disputa, seja por religião, ideologia, pedaços de terra, política e até o supostamente inocente futebol. Cá estamos, diariamente, nos matando em finais de campeonato, eleições, revoltas populares e guerras fratricidas. Só o burilamento intelecto-moral, a educação, o império da lei e as regras do convívio social refreiam esse galo de briga que vive em nós. O veneno está aqui, aboletado dentro da mente, à espreita. Varia apenas a forma de oferecê-lo: pode vir em potes com embalagem religiosa, esportiva ou de disputa política. Urge colocar em todos eles um carimbo de advertência: cuidado.
Vivo bem sem religião, mas conheço muita gente que encontra conforto e equilíbrio em sua fé. Não me julgo capaz de medir os outros pela minha régua. Quem sou eu para determinar o que é melhor para os demais habitantes deste vasto mundo?
A religião católica consolou minha avó em seu leito de morte. Deu-lhe a paz necessária em seu último suspiro. O Espiritismo confortou uma de minhas melhores amigas quando morreu sua única filha. A igreja Batista fortaleceu a vontade de um antigo colega de trabalho que desejava iniciar um tratamento para o alcoolismo. Deus é bálsamo no sofrimento inenarrável de meu amigo Túlio Mendhes. O estudo do Yoga e da meditação iluminaram a existência de vários de meus amigos que, a exemplo de alguns velhos gregos, buscavam a tranquilidade do espírito.
Por vezes a dor é imensa e se faz necessário um apoio externo, muleta, bengala, mão amiga. Só não se pode permitir que os bônus extras sejam maiores que nós mesmos. Na inversão de prioridades está a armadilha.
A chave para escapar à sedução dos abusadores é vigilância, repito. Sobre si próprio, sobre amigos e parentes em sofrimento ou sobre a infância ainda despreparada para lidar com a sordidez. Discernimento é conquista pessoal, fruto de maturidade, reflexão e esforço permanente. Sua irmã mais jovem é a desconfiança. Ambos deveriam estar presentes em nós, especialmente quando o afeto e a credulidade nos convidarem a uma entrega completa.
Seguro morreu de velho – ensina o ditado popular, a que algum sábio acrescentou: “E o desconfiado ainda está vivo”. Desconfiar na medida certa é regra de ouro para sobreviver no oceano de armadilhas que é o mundo.
Por fim, é obrigatório reconhecer: denúncias como essas requerem coragem. Há de se ter bravura para enfrentar homens poderosos, de influência global, onipresentes na mídia. Aplaudo quem os expõe, mesmo que o faça apavorado, com o peito em frangalhos, tentando conter a sangria dos sentimentos violados, encarando de frente o julgamento alheio. Sim, há sempre um tribunal pronto a avançar sobre o denunciante, pois também é da natureza humana especular, julgar superficialmente, culpar as vítimas e defender criminosos carismáticos. Sociopatas – seja na política, na religião ou em qualquer outro ambiente – costumam ter um exército de defensores apaixonados dispostos a bradar que seus ídolos são injustamente acusados e vítimas de tramóias.
É que sabem dourar a língua esses lobos humanos. Aproximam-se com a boca cheia de promessas doces, oferecendo amor, saúde, justiça social, cura, trabalho, fama, proteção aos pobres e desvalidos. Difícil escapar do seu fascínio, até porque atacam os que já estão emocionalmente fragilizados. Algumas de suas vítimas só os veem como realmente são quando suas garras e dentes já lhes rasgaram os tendões e trituraram os ossos. Outras, jamais se libertam.
A tais predadores do corpo e do sentimento alheio, é obrigatória punição exemplar. Sobre todos eles deve desabar o rigor da lei, sem desculpas, panos quentes ou quaisquer concessões.
Que se arranque sem dó a macia lã que lhes recobre os olhos onde brilha a vileza.
Essa vigilância tem que se dar o tempo todo. E as pessoas deveriam acreditar mais nas que se dizem violadas. Às vezes a desconfiança mora no lugar equivocado.
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Texto excelente, Soninha.
Por descuido com essa vigilância, já caí em algumas armadilhas na vida. Consegui aprender a lição, creio. Embora mantendo o coração aberto para amar as pessoas (é nosso objetivo maior na vida, não é mesmo?), mantenho, também, esse estado de alerta sempre com uma pequena chama acesa para ouvir mais, ler as entrelinhas e observar.
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Perfeito!!
“ Só o burilamento intelecto-moral, a educação, o império da lei e as regras do convívio social refreiam esse galo de briga que vive em nós. “
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