São Paulo é cidade bruta. Uns arranha-céus que brotam da terra, toldando o horizonte. Um populoso deserto, diria Verdi – especialmente para quem vem de longe, de uma terra estigmatizada. Leva-se algum tempo para encontrar, nas esquinas e olhares, as flores miúdas dos cactos, as rosas do deserto parindo cores.

Durante muitos anos, meu mundo nunca foi muito colorido. As cores que eu enxergava estavam sempre esmaecidas, borradas e escondidas atrás da pilha de livros. Eu não vivia: estudava. Mas os cursos de Medicina e a residência médica também chegam ao fim. Na festa de formatura, vi umas cores mais brilhantes.  Como eu era jovem, meu Deus.

Dormir por tanto tempo sobre cadeiras, pilhas de livros e macas me fez desacreditar de milagres. Trabalho, estudo e dedicação produziam resultados. No primeiro emprego, o chefe foi um dos grandes presentes que a vida me trouxe. Ainda não era milagre, pois fruto de meu esforço, mas me fez enxergar flores no deserto.  Ensinava os segredos da medicina, corrigia, elogiava, criticava.  Misto de mentor e segundo pai, dava-me conselhos sobre namoradas, investimentos, indagava de minha família distante.

A vida – dada a reviravoltas inesperadas – teve cores por pouco tempo. Eu não havia chegado ao segundo mês no emprego quando descobri um tumor. O mundo se cobriu de cinzas e sombras.  Todos aqueles sonhos tão vívidos insistiam em escapar das minhas mãos. Cada pensamento me segredava que me restava pouco tempo no mundo. Um tumor de testículo era uma sentença que eu não merecia. Se escapasse, uma outra espada pairaria sobre mim: jamais poderia concretizar o sonho de ter um filho. Ah, luz fugidia, ah cores envolvidas por sombras.

Uma solidão extra pesou sobre mim naquela São Paulo tão grande. A família era miragem ao longe, no Nordeste. Comecei a via crucis em busca de médicos. No Hospital das Clínicas, onde me formei, levei meu exame  a uma reunião. Os outros médicos espiavam e balançavam a cabeça: “Vixe, coitado!”. Sem saber que o exame era meu, roubavam as cores embaciadas dos meus olhos e dos meus dias. Prognóstico ruim – disseram. Para ter chance de cura, teria de retirar os testículos.

Dias depois, na sala do meu chefe, contei sobre a minha doença. Estava derrotado. Pedi para me afastar  do trabalho. Ele ouviu tudo, sem me interromper. Ao final, disse com calma: “Espera, vou ligar para o Dr. X, que é o melhor do nosso hospital nessa área. Estou achando algo estranho nessa historia”. Imediatamente o Dr. X me mandou vir ao consultório dele. Examinou e opinou: eu teria que operar, mas que o quadro não era necessariamente tão ruim assim. Acendido o holofote da esperança. Meu chefe e o Dr. X iluminavam todas as cores da minha curta existência.

Na sala de cirurgia, o último rosto que vi foi o do meu chefe.  Esteve lá até a anestesia me fazer mergulhar num mundo escuro e sem sonhos. Dr. X me acordou, horas depois, com uma frase tranquilizadora: “Foi tudo bem”. Deixou as melhores notícias para o dia seguinte: “O tumor era benigno e só tiramos um pedaço do testículo. Você, um dia, poderá ser pai”. Quando meu chefe entrou no quarto do hospital, eu já habitava um mundo de cores fartas, brilhantes, desinibidas. Comemoramos a notícia com lágrimas. Muitas. Você já viu lágrimas de cor? Eram as minhas: amarelo-luz, esverdeadas de esperança, vermelhas de desejo de viver. Ainda não era um milagre, pois fruto de estudo, trabalho, perseverança, conhecimento – mas como era belo de viver e sentir.

Como agradecer àquele homem tão bom? Reuni minhas economias, o dinheiro suado dos plantões. Decidi que daria a ele o melhor champanhe. Na loja chic, pedi uma sugestão ao dono. Ele me indicou um tal Dom Pérignon, que parcelei a perder de vista. Entreguei a garrafa ao meu chefe. Ele sorriu: “Essa nós vamos guardar para tomarmos juntos na comemoração do nascimento do seu primeiro filho”. Mais uma vez chorei lágrimas sentidas: cor de gratidão. E dentro da minha alma se aninhou imediatamente um sonho: um dia, com minha criança nos braços, eu e meu salvador  amigo, beberíamos o champanhe.

Quatro anos se passaram. Recebi uma oferta que mudaria minha vida profissional: chefiar um setor da minha especialidade em um grande hospital, um dos icônicos. Pensei longamente e decidi aceitar o novo desafio. Comuniquei ao meu chefe, falei sobre as vantagens do novo emprego, elenquei o salto na carreira. Ele não quis ouvir. Mudara de cor. Disse, lívido, que eu não precisava nem mais aparecer no emprego a partir daquele dia. As cores da minha alegria esmaeceram diante da cena. Uma parte minha compreendia suas razões – havia investido muito em mim, tínhamos tanto carinho e amizade um pelo outro – mas algo se quebrava no meu peito: como ele podia ser tão egoísta a ponto de não me apoiar na que se mostrava a maior oportunidade na minha vida profissional? Guardou o golpe final para a despedida: nunca tomaria o champanhe comigo. Ah, dor. Isso não, vida. Isso, não.

Os dias seguiram. No grande hospital paulistano onde eu trabalhava há dois anos, minha carreira era magnífica. Eu estava realizado, embora a agulha espetada no corpo. Não produzia dor aguda, mas aquela dorzinha crônica, sempre lembrada, sempre ali.

Conheci uma moça e nos apaixonamos. Decidimos morar juntos. A vida apresentou outra de suas surpresas escondidas na manga. A moça era sobrinha do ex-chefe. Mais ainda: era afilhada, quase uma filha, a sobrinha preferida, a mais querida. Julguei que as tramas no tecido da existência haviam nos reunido. Não foi o que ocorreu. Meu antigo protetor disse à mulher amada que eu não merecia confiança, que traía os amigos. No primeiro Natal que passei na família deles, brigou comigo. Minhas cores não desapareceram, mas por algum tempo mal eram vistas, envolvidas em sombras. E a agulha fincou-se um pouco mais.

Um dia, quando eu andava despercebido, todas as cores do mundo me encontraram. Douradas, estavam gravadas na palavra positivo em um exame de gravidez. Era o primeiro neto das duas famílias. Uma felicidade desconhecida me tomou.

Quando minha filha nasceu, ao fitar seus olhos calmos, descobri cores brilhantes, rastros de arco-íris em toda parte. Poucos dias depois, o telefone tocou: “Guardei o champanhe para tomarmos juntos. No fundo ainda acreditava que o faríamos. E foi muito mais do que eu esperava, pois foi com uma “filha” minha.”

Uma criança, filha e sobrinha-neta, foi capaz de unir cacos de vidro. Olhei para minha menina por um longo tempo e vi que, mal nascera, ela em si era milagre. Daqueles únicos, feitos de amor, que sopram ares benfazejos de perdão e reconciliação no humano peito, embalam sonhos e ressuscitam amores.

Enquanto bebíamos o champanhe, a agulha deixou meu coração. Um longo abraço, um choro contido. Um dia que jamais esquecerei. Essa história viverá comigo até o túmulo: marca o tempo em que a cor tomou meu mundo. Definitivamente.

Hoje, nas palestras diante dos grandes auditórios ou na rotina do renomado hospital, testemunho a grandeza dos homens, de seu esforço e trabalho. Eles não sabem, mas secretamente acredito em milagres. É inevitável fazê-lo: vejo-o claramente nos olhos de minha menina, que nem falar sabia mas já dominava a arte de retirar agulhas do peito dos homens e espalhar a primavera nas almas.

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Ilustração: Alfred Sisley, Os Pequenos Prados na Primavera, 1880/1.

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Sol de Primavera, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos