Nós, jornalistas, gostamos de ser os inteligentinhos, os descolados, os que leem Bukowski e Henry Miller, os provocativos. Reza a lenda que não se sobrevive numa grande redação sendo Madre Teresa, Polyanna ou Chico Xavier. Bem, até se sobrevive, mas escrevendo sobre alagamento, buraco na rua, acidente sem vítima. Primeira página é para os ousados, os falantes, os que emparedam os políticos, os que têm na ponta da língua a pergunta capaz de abalar o país e, com alguma sorte, o mundo.

Millôr é nosso ídolo e no mesmo altar estão outros frasistas de peso e jornalistas que sacudiram estruturas. Metade de nós sonha em ser Bob Woodward; o restante que ser Carl Bernstein. Um escândalo como Watergate é o nosso maior sonho.

Se pautados para uma entrevista, já saímos da redação com sangue no olho e a intenção de, na volta, trazer a manchete no caderninho ou no gravador. E de troco endereçar um olhar de triunfo na direção da patuleia.

Entrevistas sempre trazem alguma tensão ao entrevistado e ao entrevistador. Um desafio novo. Pode ser um ringue ou perfeito pas-de-deux. Só se descobre na hora – como sexo ou restaurante novo. Mas somos uns cavalos de corrida, dispostos a entrar para a história como o que publicou a frase espetacular, a declaração bombástica, o segredo mantido a sete chaves. Queremos o diálogo memorável. Por isso tudo, é difícil superar a tentação de impressionar o entrevistado (e o público), exibir inteligência e brilhantismo, fazer provocações certeiras e profundas, demonstrar erudição, tudo com ar blasé – como se fosse a coisa mais simples do mundo.

Esse é o jogo.

Bem, isso tudo que escrevi acima se chama “nariz de cera”no jargão jornalístico – e deve ser evitado por quem segue a boa técnica de reportagem. O lead deste texto – que deveria estar lá na primeira linha se eu estivesse disposta a seguir o manual – é que desejo falar de Clarice Lispector como entrevistadora. Mas esta não é uma reportagem e sim um artigo opinativo. Portanto, estou perdoada. Sigamos.

Nas redações de ontem e de hoje há os que se surpreendem negativamente com as perguntas despretensiosas, com ares simplórios, feitas por Clarice. O mesmo ocorria quando ela era entrevistada. Clarice surgia algo decepcionante, com visível enfado.

Disse ontem o Celso Arnaldo Araújo, jornalista que a entrevistou em 1974: há um mistério em Clarice, pois a mulher que respondeu às minhas perguntas não parece a autora de A Paixão segundo G.H. Restou ao Celso Arnaldo  cogitar, literariamente, a hipótese de que a Clarice de A maçã no escuro  e A hora da estrela, “todos com mergulhos psicológicos profundos, estivesse permanentemente possuída diante da máquina de escrever”.

Na mesma revista Manchete, meses antes da matéria de Celso Arnaldo, ela foi entrevistada junto com um jovem escritor de 20 anos, tagarela e opinativo. Clarice em vários momentos se impacientou: “Não fala difícil, rapaz. Seja fácil e simples”. E mais adiante: “Não fale demais, senão você se perde”. Revelador.

Voltemos à Clarice Lispector entrevistadora. Imagine-se por um minuto no lugar dela. Inteligentíssima, escritora famosa, com aquele ar de Greta Garbo e uma sobrancelha que, se erguida na altura certa, poderia congelar o interlocutor.

Agora imagine-se entrevistado por ela. Se nem a própria Clarice se achava simpática, o pobre entrevistado seria o último a ter tal esperança. Atemorizadora é uma boa palavra para definir a situação.

É ótimo não se ter de provar coisa alguma a ninguém. Clarice certamente não precisava. Por isso, nas suas entrevistas trilhou outro caminho.

Ela se sabia intimidadora, inteligente e talentosa. Como evitaria a tremedeira do entrevistado? Qual o caminho para se aproximar dele sem assustá-lo, como a um pássaro que lhe vem comer nas mãos mas levanta voo ao primeiro movimento desastrado? Como fazê-lo escapar da armadilha de iniciar com ela um duelo de inteligência?

Clarice superou tudo isso adotando uma atitude quase budista de se despir da vaidade, do ego. Fez perguntas que envergonhariam o estagiário – ela, a grande Clarice, a incensada.

Sim, Clarice fez perguntas que pareciam saídas de um caderno de colegial. E costumava repeti-las, sem pudor algum. Perante a estranheza delas, que restava ao entrevistado? Murmurar a si mesmo: é esta a pergunta que me faz uma das nossas mais densas escritoras? Enquanto pensava nisso, nem notava que se desarmava. E logo entregava a verdade, sem reservas. Era tudo o que ela queria: colocar na mira do seu telescópio um vibrante universo novo, pleno de vivências e sentimentos.

Quem brilha em todas as entrevistas de Clarice é o entrevistado. Ela permanece em estado de humildade, quase menina, fazendo perguntas não sofisticadas. A Clarice escritora é um ser mítico, que só aparece nos seus livros. A mulher que concedeu e conduziu entrevistas se refugiou na simplicidade.

Funcionou perfeitamente. Veja o caso de Nelson Rodrigues. Imagine-se diante do autor de Vestido de Noiva e A vida como ela é. Imagine-se frente àquela inteligência bruta, que impiedosamente dissecava a sombra no ser humano; àquele humor que cortava como navalha amolada; àquela crueza de quem contemplou o abismo.

Como perfurar a armadura de solidão erguida por alguém com a potência intelectual de Nelson Rodrigues? Ele também manipulava as palavras e sabia como escapar. A solução foi oferecer-lhe um pedaço de pão – desses, de padaria. Nada de croissant, de high tea. Pãozinho distribuído aos pobres na festa de Santo Antonio, pãozinho simples e quente, que faz despertar memórias cálidas.  

Aproximou-se desarmada. e sua mensagem foi: “Eu não tenho medo de me mostrar simples. Venha”. Ele veio. E  se deixou ver em profundidade. Um Nelson raro, que encanta e surpreende. O poeta fingidor de Pessoa, ali, exposto em sua fragilidade solitária, longe de tudo o que dele se pensava.

Clarice sabia muito bem o que fazia. Note a sutileza ardilosa no final da entrevista: “Nelson, você tem dado muitas entrevistas. Todas elas se parecem com esta?”. Parece autolouvatório e infantil. Mas a resposta repõe as coisas no lugar: “Não, eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço, para não trapacear nem com você nem com o leitor”.

Abnegado esforço, senhoras e senhores, de não fazer o que fez nas demais entrevistas dadas aos sofisticados: trapacear, dizer a frase de efeito em vez do sentimento real? Ali estava Nelson Rodrigues a expor fraturas, mágoas e amargor em um momento confessional. Visivelmente, ele luta contra si mesmo e se esforça para entregar a Clarice um homem que fala sobre o amor e tenta desesperadamente não soar piegas. Esse é o triunfo de um escritor: desnudar a alma alheia. Clarice conseguiu revelar a de Nelson Rodrigues e de todos os outros. A reação dos leitores às suas entrevistas comprova o acerto.

O que se passa na mente de um escritor é mistério. Uma coisa, porém, é certa: quer sempre espiar a alma do outro. O entrevistado, o amigo, o desconhecido que conta histórias, todos são pequenos universos que se pode desvendar. Tem-se diante desse microcosmo uma quase reverência. Aproxima-se dele com cautela e respeito até contemplar a dança dos seus sóis, planetas e nebulosas.

Creio que compreendo o mistério de Clarice, meu caro Celso Arnaldo: nunca foi a jornalista a ocupar espaço nas redações. Sempre foi a escritora. Por isso suas perguntas primárias arrancavam confissões surpreendentes. Por isso dava respostas curtas e até superficiais quando era entrevistada. Ali, tecnicalidades não lhe interessavam, críticos literários muito menos.

Um escritor como Clarice, que mergulha em seus precipícios, só se expõe no sacratíssimo terreno de um livro. Fora desse ambiente, nem sabe falar de si. Vê-se desajeitado, irritadiço. Tudo lhe soa cansativo, supérfluo e desnecessário. Somente se sente autorizado a falar sobre segredos de alma, repito, quando se põe de joelhos diante da única deusa que cultua: a literatura que traduz toda vida.

***

Clarice Lispector entrevista Nelson Rodrigues

Clarice Lispector entrevistou Nelson Rodrigues. Publicou no dia 11 de maio de 1968. Imagine isso.

Nos anos de 1968 e 1969, já escritora reconhecida, Clarice assinou na revista Manchete uma seção: “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”. O Brasil e o mundo enfrentavam períodos turbulentos. As 59 entrevistas de Clarice para a Manchete tornaram-se rota de fuga para um espaço de reflexões filosóficas, introspecção e flertes com a delicadeza.

Suas perguntas a personalidades famosas soavam um pouco desarmantes, de uma aparente simplicidade. Entretanto, eram destinadas a fazer surgir algo mais profundo, algo que habitava o subterrâneo do coração.E foi assim que Nelson Rodrigues se tornou seu primeiro entrevistado. Ela o avisou que desejava algo diferente. “É um homem tão cheio de facetas que lhe pedi apenas uma: a da verdade. Ele aceitou e cumpriu”.

Nelson não sorriu durante a entrevista. Nenhuma vez, pois perante a verdade grave não há razão para sorrir – observou a escritora. Ao final, Clarice perguntou com uma certa candura que escondia intenções mais fundas: “Você gostou de me dar essa entrevista?” Ele responde com sinceridade: “Gostei profundamente. O que conta na vida são os momentos confessionais”.

Nelson foi confessional. E dolorosamente verdadeiro.

As entrevistas de Clarice foram reunidas no livro: “Clarice Lispector – Entrevistas”, publicado pela Editora Rocco.

Eis uma parte da entrevista:

Clarice: Você é de esquerda ou de direita?

Nelson: Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Eu sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de duas coisas, lendo dois volumes sobre a guerra civil na História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser canalha de esquerda nem canalha de direita.

Clarice: Nelson, você se referiu à solidão. Você se sente um homem só?Nelson: Do ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. E é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal.Clarice: Ah, Nelson, isto é tão verdadeiro…Nelson: Mas diante do resto do mundo eu sou um homem maravilhosamente só. Uma vez fiquei gravemente doente, doente para morrer. Recebi, em três meses de agonia, três visitas, uma por mês. Note-se que minha doença foi promovida em primeiras páginas. Aí, eu sofri na carne e na alma esta verdade intolerável: o amigo não existe.

Clarice: Nelson, como consequência de meu incêndio, passei quase três meses no hospital. E recebia visitas até de estranhos. Eu não sou simpática. Mas o que é que eu dei aos outros para que viessem me fazer companhia? Não acredito que não se tenha amigos. É que são raros.

Nelson: Ou eu dou muito pouco ou os outros não aceitam o que tenho para dar.

Clarice: Mas você tem sucesso real – e sucesso vem quando se dá alguma coisa aos outros. Você dá.

Nelson: Eu tenho o que chamaria de amigos desconhecidos. São sujeitos que eu nunca vi, que cruzam comigo numa esquina, numa retreta, num velório. Certa vez fui a uma capelinha ver um colega morto. Eram duas horas da manhã. Uma mocinha saiu do velório ao lado com um caderninho na mão. Fez uma mesura para mim e disse: “Quero ter a honra de apertar a mão do autor de A vida como ela é.” E me pediu o autógrafo. Eu senti que estava vivendo um momento da pobre ternura humana. Eis o que eu queria dizer: o amigo possível e certo é o desconhecido com que cruzamos por um instante e nunca mais. A esse podemos amar e por esses podemos ser amados. O trágico na amizade é o dilacerado abismo da convivência.

Clarice: Mas Hélio Pellegrino é seu amigo, e Otto Lara Resende é seu amigo.

Nelson: Não. Eu é que sou amigos de ambos. É possível que um de nós ame alguém. O difícil (não quero dizer impossível) é que esse alguém me ame de volta. Hoje, antes de vir à sua casa, almocei com Hélio Pellegrino, como faço todos os sábados. Por causa de uma opinião minha, ele, com a sua cálida e bela voz de barítono de igreja, dizia para mim: É mentira, é mentira! Nunca me ocorrera nesta encarnação ou em vidas passadas, chamá-lo de mentiroso. Naquele momento ele pôs entre nós a mais desesperada e radical solidão da terra. Tal agressividade não deveria existir na história da amizade. Cabe então a pergunta: e por quê? Resposta: é impraticável a discussão política nobre. Sempre que pensa politicamente, o sujeito se desumaniza e desumaniza os problemas. E o Otto nunca me deu um telefonema. Estou dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável amargura.

Clarice: Você fala em encarnação e vidas passadas. Você é esotérico? Acredita em reencarnação?

Nelson: Eu sou apenas cristão, se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de pé é a certeza da alma imortal. Eu me recuso a reduzir o ser humano à melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se morrêssemos com a morte.

Clarice: Você se considera artisticamente um homem realizado?

Nelson: Não. Eu me considero, inversamente, um fracassado. Não me realizei e nem acho que alguém se realize. O único sujeito realizado é o Napoleão de hospício que não tem Waterloo nem Santa Helena.

Clarice: Nelson, qual é a coisa mais importante do mundo?

Nelson: É o amor.

Clarice: Qual a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo

Nelson: É a solidão.

Clarice: O que é o amor, Nelson?

Nelson: Eu sou um romântico num sentido quase caricatural. Acho que todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua além da vida e além da morte. Digo isso e sinto que se insinua nas minhas palavras um ridículo irresistível, mas vivo a confessar que o ridículo é uma das minhas dimensões mais válidas.

Clarice: Nelson, você tem dado muitas entrevistas. Todas elas se parecem com esta?

Nelson: Não, eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço, para não trapacear nem com você nem com o leitor.

***

É preciso dizer que, durante a entrevista toda, ele não sorriu nenhuma vez. Com a verdade grave não se sorri. Mas Nelson não tinha ainda dito o que queria quanto à pergunta “o que é o amor”. Voltamos, pois, a ela.

Nelson: Não estou me referindo ao sexo. O sexo sem amor é uma cristalina indignidade. Sempre que o homem ou a mulher deseja sem amor se torna abjeto. Uma mulher não tem o direito de se despir sem amor. Mesmo o bíquini, mesmo o decote, e repito, nenhuma forma de impudor é lícita se a criatura não ama. Se a criatura não ama, não pode usar biquíni, ousar certos decotes ou qualquer outra forma de impudor.

Clarice: Você é um homem de sucesso. Até que ponto o sucesso interfere na sua vida pessoal?

Nelson: Não interfere justamente porque eu e Lúcia fundamos a nossa solidão.