Para Sergio Leodoro
A existência é o som de um bonshō vibrando pelo ar. A melodia do sino de bronze já se dilui suavemente após tua despedida. Ressoou e silenciou, cumprindo o ciclo de mudanças que rege o mundo. Transitória, não pôde ser retida.
O incenso queimou até o fim, mas seu perfume permanece ao lado das cinzas. Ainda restam traços de ti em meio às coisas cotidianas. Frescas memórias de risos e agonias compartilhadas. Daqui a alguns meses o tempo começará a tudo cobrir com o seu translúcido véu. Um tapete de grama crescerá sobre o teu túmulo. Virá uma nova primavera e as flores brotarão, indiferentes a mim e a ti, como nos lembrou o Pessoa em seu poema.
A roda do dharma girou. Findou-se o ciclo. Trouxe soluços, ilusões e apegos. Trouxe também o amor que encheu os teus últimos dias com uma felicidade que parecia além das tuas expectativas. Sorrimos contigo, todos nós, os teus amigos. Veio a doença e a morte. Choramos em tua companhia. Experiências tuas e nossas, a nos enriquecer.
Seja o que houver após o corpo – o grande vazio ou o passo seguinte do ciclo – agora há a paz perfeita, o fim da dor. Inútil especular. Conforta-me saber que, na tua hora de sombras, surgiu pequena luz. Transcendendo a tristeza, teu amor sussurrou palavras doces ao teu ouvido e os amigos seguraram tua mão que tremia, ouvindo contigo a antiga canção do templo budista, escrita há mais de mil anos.
Enquanto vejo a lua descer, um corvo grasna na geada.
Sob a sombra dos bordos, um pescador se move com sua tocha.
E eu ouço, para além de Suzhou, do templo da Montanha Gelada,
O sino da meia-noite tocando para mim aqui no meu barco.
Tua existência – gota d’água neste oceano de vidas – deixará boas lembranças. Leve o coração pacificado. Tudo está perdoado e quitado. Já não importa. Sem arrependimentos, ilusões ou desejos. O importante foi a trajetória, o caminho percorrido, o aprendizado.
No verão de 2017 escrevi um texto sobre a efemeridade. Meu pé de jasmim havia dado sua primeira flor, linda e jovem. Os jasmins surgem de repente. Num segundo são botão, no outro, explodem em perfume de flor aberta. Também morrem muito depressa: em poucos dias murcham e desaparecem. Olhei a flor recém-nascida, junto do Buda, e refleti sobre a brevidade da existência e as coisas que passam, cumprindo o ciclo de destruição e renovação. Naquela época, assim como agora, o pensamento da finitude me soou natural, mas não deixou de cravar fina agulha no meu coração que anseia pela paz. Resquícios de apego. Você comentou na ocasião, reafirmando o princípio máximo do budismo: “Todo sofrimento vem do desejo. A impermanência é a causa das maiores dores e, também, de libertação”. E concluiu, do seu jeito filosófico: “Um dia a menos, um dia a mais… Tudo mudou, mesmo parecendo que não”. Hoje tudo mudou, embora a marcha do mundo pareça continuar igual. Na próxima primavera haverá flores.
O bonshō ressoa agora, além do mundo transitório.
É tempo de descansar.
É tempo de paz.
Efímero…fugaz…💔🙏🏻
CurtirCurtir
Um abraço afetuoso.
CurtirCurtir