A carta que você lê abaixo foi escrita pelo ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1966, e endereçada ao então governador eleito de Minas Gerais, Israel Pinheiro. É uma carta reveladora, melancólica e afetuosa, na qual o idealizador de Brasília manifesta seu desconforto por viver fora do Brasil, sua saudade do país, seu cuidado para preservar os amigos. JK afirma que sua carreira política está encerrada e deixa transparecer sua crença no Espiritismo. No texto, Juscelino parece acreditar firmemente que o sonho que tivera com Israel Pinheiro era um fenômeno espírita destinado a confortá-lo em sua tristeza e solidão.
Após deixar a Presidência da República, Juscelino foi eleito senador pelo estado de Goiás, em 1962. Sua intenção era concorrer novamente à Presidência da República nas eleições de 1965. A candidatura de JK foi lançada pelo PSD em 20 de março de 1964. Os demais pré-candidatos eram Carlos Lacerda, Leonel Brizola e Jânio Quadros. Todas as candidaturas foram abortadas pelo golpe militar de 31 de março de 1964.
Em 11 de abril de 1964, o Congresso Nacional elegeu presidente o general Humberto Castelo Branco. O vice era um antigo amigo de Juscelino, José Maria Alkmin. Juscelino votou na chapa Castelo Branco-Alkmin.
Ainda assim, o ex-presidente foi acusado de corrupção e ligado aos comunistas. Teve os direitos políticos cassados em 8 de junho de 1964. Perdido o mandato de senador, exilou-se voluntariamente nos Estados Unidos, de onde escreveu esta carta ao amigo e aliado Israel Pinheiro, que dois meses antes havia sido eleito governador de Minas Gerais.
JK voltou ao Brasil logo após as eleições de 3 de outubro de 1965, mas não permaneceu. Como explica na carta, sequer ficou para a posse de seus aliados Israel Pinheiro e Francisco Negrão (eleito governador na Guanabara), ambos adversários do governo Castelo Branco.
Kubitschek só regressaria definitivamente ao Brasil em 1967. Nove anos depois, faleceu em um suspeito acidente de carro na via Dutra.
Esta Carta de JK pertence ao Acervo do Arquivo Público Mineiro, Fundo Privado Israel Pinheiro. Sua divulgação no blog foi gentilmente autorizada pela Secretária-Executiva da Associação Cultural do Arquivo Público Mineiro-ACAPM, Marcia Alkmin.
Para visitar a página do Arquivo Público Mineiro clique aqui.
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Nova York, 10 de janeiro de 1966.
Meu caro Israel Pinheiro:
Deve ter havido algum fenômeno espírita hoje, porque você apareceu para mim em sonho e tivemos uma conversa muito animadora.
Estava bem disposto, gordo, a pele lisa, bem vestido e até bonito.
Ontem, com uma temperatura de 15 graus abaixo de 0o, passei o dia todo dentro do meu escritório. Ninguém ousa pôr os pés na rua. A tristeza da alma se deixa influir muito pelas cores do ambiente que nos cerca.
Daí ter eu, ontem, desejado ardentemente estar no Brasil, no meio dos meus amigos, naqueles bate-papos que constituíam a minha única distração. Parece-me que você percebeu este meu estado de espírito e veio à noite conversar comigo.
Perguntei-lhe se tinha alguma dúvida sobre sua posse e você me respondeu que não. Aliás, isso coincide inteiramente com o meu ponto de vista.
Encontrei-me há dois dias com brasileiros que me criticavam porque havia deixado o Brasil. Mas confesso, meu caro Israel, que uma das razões mais fortes a me ditar aquela atitude foi exatamente o receio de que a minha presença perturbasse a posse do Negrão e a sua.
O New York Times de hoje dá uma longa reportagem sobre o Costa e Silva, com a sua fotografia e as notícias de que está assentada a candidatura do Ministro da Guerra à sucessão do atual Presidente.
Outra notícia informa que esta candidatura está saindo das ruínas do PSD. E eu filosofo comigo como é curioso que esse partido, mesmo despedaçado, ainda possa impor candidatos à vitoriosa UDN.
Esses problemas não me interessam mais. Quero viver dentro da realidade e esta me ensina que a minha carreira política é um capítulo encerrado. Não tenho nenhum pesar com isto. Dei ao Brasil o máximo de contribuição que um homem lhe poderia proporcionar. Paguei mais do que qualquer um o preço da minha dedicação e do meu esforço. Isso também está na lei dos homens. O que eu desejo simplesmente agora é cuidar de minhas atividades particulares, voltando porém para o Brasil.
Não suporto a vida no exterior. A gente tem direito de abusar do sistema nervoso até certa medida. O meu já me deu o que podia.
A tristeza que cerca todos os atos da minha vida aqui a tem transformado numa solidão insuportável.
A palavra que você veio me dar a noite passada foi exatamente esta: que eu aguentasse com paciência, porque em breve você me poderia abrir os caminhos do regresso.
Amanheci hoje um pouco mais animado, lembrando-me de sua mensagem. Sei que essas mensagens se transmitem só de um mundo para outro. Mas não estamos nós em dois mundos?
Lembro-me muito das palavras que o seu pai lhe transmitia e sei que dentro delas a sua linha política terá a mesma grandeza que em outros tempos singularizou a ação de João Pinheiro. Você terá uma tarefa dupla. Embelezar a sua moldura e preservar a glória do pensamento de seu pai. Só tivemos em Minas um político filósofo. E este foi aquele do qual você recebeu o nome.
A sua larga experiência, aliada a uma amplidão de vistas, dará a Minas o chefe de que ela precisa.
Quero antecipadamente juntar os meus votos aos do povo mineiro, para que o futuro período de governo seja a realização, sobretudo, de uma política que dê paz aos homens de boa vontade.
Abraços afetuosos do
Juscelino





