– Dona Simone, hoje tive uma treta com o Fulano de Tal.
A mensagem surgiu no Messenger em setembro deste ano. Quase nunca abro o aplicativo. É um território perigoso onde pululam vídeos e mensagens alarmistas, piscando em pavor e terraplanismo. Não desta vez – disseram os deuses da literatura incumbidos de aproximar autor e personagem. Eu ouvi. Nunca antes havia falado com aquele homem desconhecido, mas parei a tradução de Tagore e respondi com bom humor.
– Ih, menino, puxou briga com brigador profissional…
– Bem, eu disse a ele… [e contou toda a briga virtual]… falei que ele estava passando pano, daí ele me chamou de Zé Mané. Eu o chamei de nervosinho e boneca…. [pausa] Você acha que pode nos reconciliar?
– Hahahaha, desculpa, mas vocês se xingaram de um jeito muito engraçado.
– Pois é…. somos dois civilizados rs
– Posso tentar falar com ele.
– Tá. Obrigado. Gosto muito de você. Diga que gosto muito dele também. E que me desculpe.
– Eu digo. Ele te bloqueou?
– Bloqueou.
– Vixe, ficou bravo. Vou falar amanhã, quando ele estiver mais calmo. Vou dizer que você pediu desculpas, tá? Vou tentar, querido. É uma bobagem, tomara que ele te desbloqueie.
– Brigado, querida.
– Posso te mandar um poema que fiz em 2003, quando ainda era casado com minha ex, há 21 anos?
– Claro!
[manda o poema].
Elegia – Eu era tosco, cru e previsível / tu eras sinuosa, transbordante, misteriosa e linda. / Eu há muito esquecera o riso, tu eras leveza e malícia. / Eu era sempre cinza, tu eras o arco-íris (…) Sem ti, eu teria me matado.
Sob as palavras, feridas abertas.
– Menino, que poema intenso, apaixonado. O casamento acabou, mas ficou um poema. Viu como é bom escrever versos?
– É isso aí. Bom que você gostou. Mas diga praquele cabeça dura do Fulano de Tal que gosto dele, mesmo nunca tendo lido Joyce.
– Direi, direi.
– Boa noite, dona Sonia. Você é um encanto.
– Boa noite, meu querido. Muito obrigada.
Antes de ir, ele me manda (duas vezes) um post antigo, em que fala do inverno: no meio da tarde cinza o sol joga um calorzinho no morro e o fumo da umidade vai subindo devagar, dando um toque especial à paisagem urbana, fazendo o olhar da gente viajar.
– Desculpe. Me empolguei e me repeti. Me sinto um rato.
– Imagina, acontece. Vou ler após o jantar, está bem?
– Claro. Após o jantar é melhor, senhora. Era só um sol se pondo lá em São Paulo. Sou um idiota quando bebo. Ignore.
Não ignoro. Entre os quase 15 mil amigos virtuais, ele está lá, escondido atrás de palavras cruas, e algo dele dói também em mim. Porque as palavras me sussurram coisas que nem sempre estão grafadas ou são ditas em voz alta.
– Desculpe, dona Sonia. Eu sou só um cara que pensa e que deu um chute no rabo de um cara que não pensa: o meu pai. Tô cansado. Adorei que você me respondeu. Como estou sempre bêbado, achei que você não existia.
Diz que é um homem-porta, fala um palavrão, em seguida pede desculpas. No outro dia manda mensagem, envergonhado.
– Credo, como essa cachaça me deixa estúpido. Mil perdões. Desculpe o monólogo imbecil no fim da conversa de ontem. Tem um Mister Hyde muito idiota que aparece quando bebo demais. E eu bebo muito quase o tempo todo.
Noto a segunda referência literária. Ele manda mais um poema, “Bruma”, sobre um mundo de desolação e medo, permeado de fantasmas de cansaço e tédio.
Respondo com tranquilidade.
– Ih, nem se preocupe. Eu não julgo as pessoas, não. Ah, Fulano de Tal respondeu e te desbloqueou. Falei para ele que você sentia muito e pediu desculpas. Ele disse que está tudo bem.
– Muito obrigado, Sonia. Eu fui chato no meu comentário. Vou me policiar melhor. Um abração.
– Já passou, querido. Ficam as lições. Uma beijoca!
– É verdade. Beijos.
(…)
– Nem conheço você no mundo real, mas deu vontade de compartilhar com você essa notícia. Vou deixar de ser um bêbado acabado e voltar à atividade.
E me conta que vai voltar a trabalhar depois de nove anos parado. Peço notícias e ele me diz que tomou umas pra comemorar, embora não possa mais, e jogou sinuca com o dono do boteco. Perdeu no detalhe.
Aos poucos descubro que foi o único da família a fazer faculdade. “Quando me formei, minha mãe já tinha morrido dois anos antes. Meu pai não foi na minha formatura porque era na catedral católica e ele era crente. Só eu sei o quão difícil foram aqueles quatro anos e meu pai não foi porque ia contra a religião dele. Ele mereceu o tomoe-nage que dei nele quando tinha 15 anos e expliquei que não iria mais seguir a religião dele. Sabe o que é um tomoe-nage? Você põe os pés no peito do adversário e o joga por cima de você. Enfim… não quero entediar você”.
Falamos de tudo: de álcool, de drogas, de tragédias domésticas. Diz que só consegue dormir com remédio. Acha que sou bonita, apesar de branquela. Respondo que fotos enganam. Ele encerra o assunto dizendo que é estranho conversar “quando estou bêbado e você, não”.
No dia seguinte abriu a conversa dizendo: “Caramba, que porre. Desculpe alguns excessos”. Conversamos quase todos os dias. Mandou fotos de janelas, árvores e flores esquecidas. Disse que viu minhas fotografias dos jardins na Califórnia e desejou ver a beleza em torno dele. Fotografou com o celular. “Muita beleza. Eu não acreditava em tanta beleza que ninguém via. Eu podia ter voltado pra casa rápido. Mas fiquei por lá, bebendo e vendo, vendo a paisagem. Sai do restaurante e fiquei 40 minutos sentindo e tirando fotos. Precisava disso. O mundo ainda é bonito”.
Outro dia fotografou uma lagarta verde, perdida no chão de um bar. E disse que também se sente perdido.
Perda é uma palavra que não lhe falta. Ele é sozinho. Perdeu de vista quase todos os filhos e a mulher amada após 25 anos de casamento. Perdeu a cabeça em brigas no Facebook e, em consequência, perdeu amigos. Julgou mal e foi mal julgado. Restaram os poemas, as conversas, os livros, os cabelos brancos e o álcool.
Veste-se de algum cinismo, por vezes. Faz-se de forte. De nada se queixa. Conta-me de sonhos elaborados, em que voa; diz que tem pena de mim por ter tantos sentimentos. Eu rio, mas na maioria das vezes fico longas horas a pensar. Ele desafia minha regra de não ser invasiva e dar palpites ou conselhos a quem não os pediu ou deseja. Mas algo em mim agora acha que sou patética e covarde.
A literatura vive pelo meio das conversas. Bukowski, John Fante, Peter Weiss. Música também. Hoje me mandou algo do Dire Straits. Lady Writer, claro.
Ele acha que converso por compaixão. Está errado. Converso porque há nele humanidade visceral, desespero, agonia e fios soltos de esperança que ele nega. Eu o vejo. Sigo seus passos que tropeçam. Sou grata a ele por confiar em mim, por me dizer do seu mundo quebrado.
Nos nossos diálogos (que ele intitulou de “Conversa de bêbado e escritora”) não há julgamento, cobrança, melindre. Um pequeno espaço sem tribunais, embora cada minuto ponha sombras nas paredes, reviva fantasmas há muito esquecidos e invariavelmente me deixe na boca uma ressaca moral dilacerante. Talvez um dia desses eu lhe diga que fiz esse texto e coloquei o link dos Alcoólicos Anônimos no finzinho. Meu fio de esperança em uma linha.
Dois seres humanos conversam nas madrugadas. Um diz coisas de lodo e subsolo; o outro apenas escuta, em silêncio, o teatro da existência se desenrolar, repleto de drama e de amarga poesia. Ouve esmagado, sem nada fazer além de sangrar ao escrever.
***
Alcoólicos Anônimos: https://www.aa.org.br/
Pintura: Henri de Toulouse-Lautrec. Ressaca.
Sia, “Chandelier“, uma canção sobre alcoolismo.
Que belo tête-à-tête no espelho!!!!!!!
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