Um dia acordei num mundo de papel e de sonhos. Flutuava como água-viva num breu de abismo e mistério. Pareceu-me completamente natural não ter um corpo feito de ossos e músculos. Eu era apenas uma silhueta translúcida com olhos gigantes a espiar todas as coisas e a fazer brotar vida onde tocasse. Ao menor sinal da minha vontade, erguiam-se florestas, homens, bichos e o sol. Nada me assustava. Poder imenso, inebriante.
De argila úmida modelei a garota. Soprei com força na sua boca pálida e ela se pôs a respirar. Sensação sublime a de, com um gesto das mãos, fazer nascer movimento e sons onde antes havia imobilidade e silêncio. A menina carregava um vidro de perfume. Flutuei em torno dela e notei que seus cabelos finos tinham cheiro de peixe cru. Eu a pus para dormir numa rede, embalada por brisa quente.
Dois passos depois, minhas mãos quase invisíveis desenharam a manhã surgindo atrás das montanhas. Róseos céus de outono, cheiro de milho cozido e os dedos de uma jovem mulher a fazer tranças na criança de vestido vermelho. Pequeno pássaro azul pousou num totem. Sorri.
Sons de flauta, de oboé e de piano escapavam do peito de metal de um robozinho que pedalava um monociclo. Com a ponta dos dedos colei nele um coração de carne e osso. Desta vez soprei com delicadeza até ouvir o coração pulsar. E nos espelhos claros deste novo mundo, por um breve instante, fui Seshat, senhora da Casa dos Livros, a escrever o tempo dos reis nos pergaminhos.
O véu do meu corpo criou muitos outros homens e mulheres, luas e vozes. Pintou com delineador os olhos de uma linda mulher, pôs-se a escutar um choro sentido no segredo do confessionário e fez a mão de um zelador pousar na testa da idosa muda. Num rio de memórias fez nadar iaras de verdes cabelos e apontou a um barqueiro o caminho da escuridão. Com um movimento simples parei a ampulheta do tempo: imobilizou-se a manteiga que escorria do pão, um homem tímido permaneceu vestido em um terno da moda e mantive eternamente vivo o avô dos meus filhos.
Saraswati pôs as mãos sobre as minhas e me ensinou a esculpir a existência. Escrevi. Tudo o que eu trouxe do mundo real foi plantado, colhido e eternizado neste novo livro. São as histórias de A Página em Branco dos Teus Olhos, meu presente a vocês.
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Texto: Sonia Zaghetto
Arte: Alexandre Soares
A Página em Branco dos Teus Olhos. Livro de Sonia Zaghetto e Cláudio Chinaski. Ed. Senhor Corvo – Artes do Imaginário.
Lançamento: Dezembro de 2020
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