Além dos limites da vida e da morte
Aí está você, meu amigo!

(Rabindranath Tagore)

A lua estava alta no céu quando concluí, neste último dia de 2020, a tradução de um livro de Rabindranath Tagore. Eu tinha lágrimas nos olhos. Era o fim de uma jornada de cinco anos a lidar com esse texto de apenas 50 páginas que trata de questões fundamentais e muito atuais, como a ameaça de uma doença, isolamento em casa e a forma como encaramos perdas e a nossa própria morte. Ao fim dele, uma única lição: após tudo isso, só levaremos a flor do amor que cultivamos.

Neste ano que finda, não consigo pensar em ninguém melhor do que Rabindranath Tagore para nos consolar em meio ao caos, medo e dor.Amor e serenidade perante perdas e morte são a essência da arte de Tagore. Sua literatura e sua música traduzem a experiência pessoal do poeta com a morte de seus familiares mais amados. Uma vida inteira de perdas avassaladoras que resultou em textos plenos de espiritualidade, coragem e doçura.

O texto que traduzi foi escrito pouco depois que Tagore encarou mais uma dessas perdas, talvez a que mais o impactou: a morte do filho de onze anos, Shamindranath. Esta veio depois da morte das mulheres que ele amava profundamente – a mãe, a jovem esposa, a filhinha e a cunhada (escritora, musa e melhor amiga). Desta vez, levou o filho mais amado, que se dizia ser tão talentoso quanto o próprio Tagore. Sobre esse momento, o poeta escreveu: “Quando o último momento de meu filho estava prestes a chegar, eu sentei sozinho no escuro, em uma sala ao lado, orando intensamente por sua passagem para o próximo estágio de existência em perfeita paz e bem-estar. Em um determinado ponto do tempo, minha mente parecia flutuar em um céu onde não havia escuridão nem luz, mas uma profunda calma, um mar sem limites de consciência, sem uma ondulação ou murmúrio. Tive a visão de meu filho deitado no coração do Infinito e estava prestes a gritar para o médico que estava cuidando dele no quarto ao lado, que a criança estava segura, que havia encontrado sua libertação. Senti-me como um pai que enviou o filho pelo mar, aliviado ao saber de sua chegada a salvo.” Cada uma dessas palavras está presente nas falas dos personagens do livro que traduzi.

Estive na casa de Tagore em Calcutá e imaginei que, pelas imensas janelas de vidro de seu escritório, ele viu a árvore de champak se cobrir de flores, ano após ano. A primavera chegou e deixou Bengala Ocidental muitas vezes, o poeta agora parecia um profeta de longas barbas, um homem santo que carregava a paz nos olhos.

ssa paz agora me acompanha. Está nos meus olhos também. Vejo meus próprios mortos adormecidos no coração do infinito e, em meio à incerteza dos dias, pude olhar para mim mesma com tranquilidade e reconhecer minhas imensas fragilidades, o longo caminho de lutas que ainda tenho pela frente.

Sem nenhuma dúvida, 2020 foi um ano de aprendizados. Deixou cicatrizes fundas em mim. Ainda são recentes, doem ao toque, mas as encaro com gratidão pela profundidade das lições que trouxeram.

Que 2021 nos encontre a todos dispostos a cultivar essa flor delicada que chamamos de amor – é o que permanece.