Sonia Zaghetto
Livia, 45 anos, aparenta ter uma vida perfeita. A gaúcha bonita e elegante é médica, esbanja inteligência, tem uma bem sucedida carreira profissional, cinco empregos e vive em um apartamento de classe média alta em um dos melhores bairros de uma capital brasileira. Tudo nela exala segurança e sucesso. Livia, entretanto, tornou-se perita em ocultar suas carências afetivas e decidiu viver sozinha. A razão? O medo de ser enganada novamente por homens aproveitadores, violentos ou golpistas. Foram pelo menos sete num período de dez anos. Ela escapou, mas não sabe se poderá ter a mesma sorte no futuro. A palavra solidão permeia todas as suas falas. É um peso onipresente a assombrá-la, assim como o temor de novas decepções. Livia é a prova viva de um certo tipo de impacto emocional, muito profundo e quase invisível, deixado por relacionamentos destrutivos.
A médica vem de uma família pequena – pai, mãe e avó, todos já falecidos. Com o único irmão ela não tem qualquer contato. Ela me diz que é bem resolvida e que não sofre por passar os natais sozinha, assistindo filmes na TV. Também garante que tem amigos com quem pode contar e que leva uma vida tranquila, na qual se diverte, vai a cinemas e restaurantes, viaja e pratica corrida. Ainda assim, ao bom observador não escapa a lacuna sob a carapaça que criou para se proteger.
Basta estender um pouco mais a conversa e ela mesma admite: “Quem me conhece pouco, não nota que sou carente, mas quem convive mais percebe que sou solitária. Então, acho que esses homens pensaram: ela é sozinha e vulnerável. Mas o que eles não contaram é que sou arisca e não previram o contragolpe”, orgulha-se. Uma Amazona. Ferida, mas de pé. Indomável.
Livia conta que, no intervalo entre as más experiências, ela se relacionou com homens bons e honestos, mas diz que os sufocou com sua carência. “Eu achava que eram o “homem certo” e os quis muito. Eles fugiram. Eu entendo”, conforma-se. Marcada a ferro e fogo pelos desonestos, tornou-se excessivamente cautelosa, fez terapia por vários anos e até chegou a manter à mão um detetive para rastrear parceiros que conhecia pela internet.
Livia ressalva que nem todos os namorados problemáticos eram golpistas. Alguns eram simplesmente homens aproveitadores, que desejavam ter uma “boa vida” bancada por ela. Observa, ainda, que sempre notou “alguma coisa errada neles” e isso a ajudou a suspeitar e escapar. Está certa. Os capítulos seguintes desta série mostram mulheres que iniciaram relacionamentos com homens que tinham perfil semelhante e foram profundamente lesadas, financeira e emocionalmente.
“Esses homens são franco-atiradores. Atiram pra todo lado. Quando viram que eu era sozinha, se sentiram encorajados. A primeira leitura deles deve ter sido que eu era sozinha (isso é certo), carente (só até certo ponto) e fácil de enrolar (aí eles se deram mal)”, teoriza.
A médica observa que quase todos esses homens mostravam-se inteligentes e corteses, tiveram acesso a educação de qualidade e a uma vida confortável. “Só um deles era menos intelectualizado. Todos os demais tinham curso superior e vieram de boas famílias. São homens dos quais você não espera um golpe”, lamenta.
As tentativas de enganação ocorreram ao longo de dez anos, entre 2008 e 2018. De gerentes de banco a colegas médicos, passando por professores universitários e empregados de lojas de chocolate, Livia experienciou muito. Os namorados não conseguiram concretizar os golpes financeiros, mas deixaram marcas. A consequência mais visível ela resume em uma frase: “Há dois anos decidi que vim ao mundo para ficar sozinha”.
Livia atribui às peculiaridades da formação profissional parte das dificuldades que enfrentou. Afirma que, além de serem tidas como mulheres em boa situação financeira, muitas vezes as médicas se tornam alvo fácil para golpistas por conta de serem emocionalmente imaturas. “Geralmente começamos os nossos relacionamentos amorosos após a residência, quando as outras mulheres já são mães e acumulam experiências mais densas. Nós chegamos com pouca vivência, mais vulneráveis, portanto. E, para completar, há a pressão social, familiar e do relógio biológico para começarmos uma família. Digo, sem medo de errar, que a maioria das médicas sustenta marido ou está sozinha. Uma pequena parcela está bem casada”.
A frase é dita entre resignação e traços de amargura, mas logo em seguida é completada por outra, a sua marca registrada e escudo: “Eu sou sozinha e sou forte”.
Ao se despedir, ela faz uma brincadeira reveladora: “Não perdi a fé no amor. Se você conhecer um homem maduro que queira uma companheira para viver uma história de estabilidade emocional e financeira, me apresenta”.
Faço força para sorrir diante da esperança equilibrista. Não consigo.
Eis um resumo das principais experiências de Livia com homens golpistas, aproveitadores ou violentos.
O golpe da herança – Dois namorados tentaram aplicar em Livia o chamado “golpe da herança”, que consiste no parceiro contar que em breve vai receber alguns bens como herança e precisa de uma certa quantia para “desenrolar” o inventário junto a um suposto parente problemático. O primeiro a tentar aplicar esse golpe em Livia era o filho de um casal de médicos. Os dois haviam se conhecido no bate-papo do Uol, marcaram um encontro e iniciaram um relacionamento. Formado em Física, o namorado tinha mestrado e doutorado, dava aulas como professor temporário em uma grande universidade, mas tinha pouco dinheiro e vivia com a mãe idosa. Logo ela descobriu a razão dos problemas financeiros: alcoolismo.
Pouco tempo depois de iniciarem o namoro veio a tentativa de golpe. Ele havia contado que o pai falecido havia deixado vários imóveis, mas a madrasta estava dificultando fazerem o inventário. “Acho que cheguei a um acordo com a minha madrasta. Se eu der a ela R$ 50 mil, ela resolve o inventário”, disse em certa ocasião. Funcionaria assim: Livia emprestaria o dinheiro para ele, que o repassaria à madrasta. Esta abriria o inventário, ele teria acesso aos bens deixados pelo pai e, ao vendê-los, pagaria a namorada.
Livia consultou uma pessoa experiente e soube que esse tipo de golpe é bastante comum. Aproveitou para comentar que o namorado jamais vinha à casa dela, alegando que “a respeitava”. Não fazia sentido algum, já que ela era uma mulher de mais de 40 anos, totalmente independente. A pessoa consultada foi precisa: “O prédio tem câmera? É que quando estão se preparando para o golpe, os fraudadores ficam de olho para não serem registrados pelas câmeras de segurança”.
Poucos anos depois, um outro namorado tentou o “golpe da herança”. Desta vez eram dois irmãos, que estariam pondo entraves ao inventário. Pediu R$ 30 mil. “Nem preciso dizer que pulei fora à primeira tentativa”, conta a médica.
O violento – Apresentado por uma amiga, este trabalhava no mesmo hospital que Livia. “Você está no meio médico e conhece um colega de profissão: não imagina que é armadilha”.
“Um sujeito, médico, de 47 anos, muito bem sucedido, tem de ter pelo menos um bom apartamento. Se não tiver, há algo errado. O errado dele era a droga”.
Começaram a namorar e Livia identificou uma série de sinais de agressividade, especialmente no trato com pessoas de condição social inferior. Também chamou a atenção dela a indiferença do parceiro em relação às filhas, que viviam em outra cidade. Aos poucos, o namoro começou a registrar episódios de brigas, cada vez mais acaloradas.
Ela terminou a relação e o namorado passou a ameaçá-la. “Eu fiquei um ano inteiro indo trabalhar com medo. Ele ficava sentado na porta, me esperando para me intimidar. Pensei várias vezes em pedir demissão”. Logo após o término, ela chegou a se sentir culpada. As amigas diziam que era muito exigente. Decidiu fazer uma pesquisa sobre o ex. Na primeira busca no Google descobriu que ele era citado em oito processos relacionados à Lei Maria da Penha. Era um agressor de mulheres. “Oito! Pense no risco que eu corri! Pedi ajuda a uma amiga da Polícia Federal, pois fiquei em dúvida se ele era realmente a pessoa citada nos processos”. A amiga disse que não poderia dizer diretamente do que se tratava, mas informou que era melhor se afastar, pois constavam várias outras denúncias de agressão contra o namorado.
Um ano depois, ele foi demitido por ter fraturado o braço do vigia do hospital. Só assim, Livia se viu livre das intimidações.
O mentiroso – Conheceram-se no bate-papo do Uol. O homem se passava por médico. Livia desconfiou: não tinha rotina e linguagem de médico. Intuiu que havia algo errado, mas estava empolgada por ter conhecido alguém interessante.
Os dois se aproximaram mais e, quando ele a convidou para sair, ela chamou o detetive e adiou o encontro até receber as respostas. Estas confirmaram as suspeitas: o namorado virtual não era médico. Trabalhava numa empresa de chocolates.
Ela o desmascarou, mas ainda assim ele insistiu em vê-la. Num shopping, os dois se encontraram. “Confesso que deu um pouco de pena. Ele apareceu com um terno que não era dele, um número duas vezes maior”. O pretendente insistiu em continuarem o relacionamento. Ela recusou. Percebeu que era um aproveitador que nem diante do desmascaramento se intimidou.
Gerente de banco – Este homem Lívia conheceu numa agência de um grande banco. Foi levantar informações sobre financiamento de carro. O gerente que a atendeu era simpático e atencioso. Ali mesmo iniciaram uma conversa amigável, na qual ele já informou que era divorciado. Em seguida, pediu vários documentos dela, inclusive a cópia da declaração de imposto de renda. Livia de nada desconfiou. Poucos dias depois ela a convidou para sair. Iniciaram um relacionamento, regado a vinho e ótimas conversas.
“Uma tarde, recebi uma mensagem dele perguntando se havia recebido o dinheiro do seguro do meu carro, que fora roubado. Algo me fez desconfiar”. Um dia depois veio à minha casa e, depois de ir embora na manhã seguinte, telefonou dizendo que havia esquecido de entregar um papel para eu assinar. Fiquei mais desconfiada”.
No dia marcado, o namorado mandou mensagem dizendo que era para ela encontrá-lo do lado de fora do banco a fim de assinar os papéis. Ela percebeu que era para as câmeras internas do banco não a filmarem assinando o papel em companhia dele. “Consultei a minha gerente e ela me disse que todos aqueles documentos que ele solicitou eram desnecessários. Nossa dúvida era se ele pretendia tirar dinheiro da minha conta ou dar algum golpe com o seguro do carro. De imediato, trocamos o número de minha conta”. Livia nunca foi ao encontro, bloqueou o namorado no telefone e em todas as redes sociais. Para sua surpresa, descobriu que dezenas de pessoas foram alvo de golpes dados por gerentes de banco nos quais confiaram.
Os Parasitas – Livia passou uma fase em que encontrou vários homens na faixa dos 50 anos que procuravam mulheres para pagar as suas contas. “Um dia, eles foram alguém. São cultos e agradáveis, mas não se sustentam”, ela conta.
Um delesnão era um golpista no sentido clássico: “Pertencia àquela categoria de homens que não se deram bem na vida. Não era mau caráter, mas tinha algum problema que não lhe permitia se fixar em um emprego. Tivemos um relacionamento. Ele era educado e cavalheiro, mas terminei. Percebi que queria uma mulher com estabilidade financeira para sustentá-lo”.
O seguinte se mostrou um golpista profissional. Ao conhecê-la disse que precisava de pelo menos dois anos para recuperar o equilíbrio financeiro. Contou que dividia um apartamento com um amigo a fim de ajudá-lo, pois este passava por dificuldades financeiras. “Eu percebia que toda conversa com ele levava a dinheiro. Por exemplo: uma vez falei que adoraria conhecer Dubai. Imediatamente ele me disse que eu não precisaria ir sozinha para Dubai. Poderia levar alguém. E emendou: uma vez minha ex-esposa me levou para uma viagem pela Itália. Notei que estava me cercando e decidi não arcar com qualquer despesa”.
O fim veio quando o namorado disse que não teria dinheiro para irem ao cinema. Ela não se ofereceu para pagar. Disse a ele que iria almoçar fora. Ele contra-atacou: falou que queria almoçar também, mas não tinha o suficiente para isso naquele dia. “Percebi que ele estava jogando a isca para eu assumir algumas despesas. Não caí. Fui almoçar, fotografei o prato e mandei para ele, dizendo “servido?”. Ele imediatamente começou a reclamar e dizer que era fim de mês e estava sem dinheiro. Respondi que estávamos nos conhecendo e que gostaria de falar menos do assunto dinheiro. Foi a hora que ele viu que eu tinha sacado tudo e explodiu. Falou que eu o estava chamando de golpista”. O namoro morreu ali.
Dois anos depois, em uma viagem para o Rio de Janeiro, no café da manhã do hotel, Livia fez amizade com uma mulher. Ela estava acompanhando o namorado, que tinha vindo correr a meia maratona no Rio. As duas decidiram caminhar juntas na praia e, durante a conversa, Livia soube ,que a mulher, recém-separada, havia vindo do Maranhão e sua família estava desconfiada do novo companheiro. Ao ver a foto, Livia se assustou: era o amigo que dividia o apartamento com o seu ex-namorado. “Percebi que eram dois golpistas. Ele contou a ela a mesma história que o outro me contou. Eles apenas invertiam os papéis sobre quem sustentava o amigo em dificuldades. O pior: ele conseguiu convencê-la a deixá-lo usar o cartão de crédito dela!”. Livia pensou em contar a verdade, mas teve medo de represálias: “Eu sou sozinha e não sei o que eles fariam comigo, mas fiquei com pena, pois era uma mulher fragilizada e com dois filhos”.
Depois disso apareceram mais homens que não eram de caráter ruim. Foram homens importantes durante um período da minha vida, eram cultos, mas não se prepararam para o futuro. O mais emblemático destes era um que dizia ter largado a faculdade de medicina para se casar com uma mulher mais velha e de boa situação financeira, com quem viveu no exterior. Teve dois filhos com ela, mas a traiu e a mulher pediu o divórcio. “Ele voltou para o Brasil sem eira nem beira. Eu decidi que não iria pagar essa conta. Enquanto eu estava fazendo plantão e enterrando gente que eu amava, esse cara estava no exterior vivendo uma vida de príncipe. Agora quer que eu pague as contas dele? Não mesmo”.
Abusadas, a série

Abusadas é uma série jornalística semanal criada por Sonia Zaghetto e que vai se tornar um livro, a ser publicado em 2022, em parceria com o psiquiatra Guilherme Spadini. Traz reportagens, entrevistas e depoimentos de pessoas vítimas de abusos físicos, financeiros, psicológicos e sexuais durante relacionamentos afetivos. Dos golpes na internet à violência doméstica, oferece um panorama dos desafios femininos, neste aspecto específico.
A série é dividida em capítulos, sempre publicados às quintas-feiras. Alguns deles vão contar histórias de pessoas que sofreram golpes ou tentativas de golpes, reais e virtuais. Outros vão mostrar depoimentos de quem viveu um relacionamento abusivo e os demais vão trazer entrevistas com psiquiatras sobre manipulação, submissão, negação e sequelas desse tipo de relacionamento. A série vai expor os principais métodos utilizados pelos golpistas e abusadores; e os sinais que eles dão sobre suas intenções. A série será ilustrada por fotografias ou pinturas que retratam personagens reais ou míticas cuja história é marcada por abusadores. A de hoje é Amazona Ferida, cópia de um original de Fídias. Museu Capitolino, Roma.
No próximo capítulo: Abandonada na hora do parto. Sustentar um homem aproveitador pode sair mais caro do que arcar com despesas cotidianas.
Olá, Sônia! Tudo bem?
É incrível como uma única mulher consegue encontrar tantos golpistas e, graças a Deus sair ilesa e viva dessas relações.
Gostaria muito de saber como faço para contar a minha história, que foi triste, mas também consegui me livrar, de surras, palavras ofensivas, humilhação diante de parentes e estranhos e por fim, alienação parental, o que está sendo resolvido na Justiça.
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Oi Cimara, muito obrigada pela confiança. Sinto muito por você ter passado por essas experiências tão dolorosas. Por favor, pode mandar por emai:l sonia@artelivre.net ou no messenger, via Facebook. Um abraço.
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Muito bom, ilustrativo. Os golpes são os mais variados. Parabéns, Sonia!
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Sonia, parabéns pela ideia e pelo belo trabalho. Acredito que a ajuda será impossível de ser mensurada.
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Nossa! Inacreditável, parabéns pela iniciativa muito bom ouvir a experiência de outras mulheres.
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Entendo perfeitamente o que é fechar as portas depois que percebemos os abusos. Mas também compreendo mulheres que se sujeitam a abusos sutis. Para a sociedade mulheres só são felizes se tiverem um par.
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