There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy.
– William Shakespeare. Hamlet (1.5.167-8)
Neste instante em que – com o médico psiquiatra Guilherme Spadini – inicio o projeto da série “Abusadas” e de um livro sobre pessoas que sofreram golpes ou abusos físicos, psicológicos e financeiros por parte de parceiros, creio ser útil e de bom tom esclarecer alguns aspectos dessa iniciativa.
Abaixo você encontra dois textos – um de minha autoria e o outro de Guilherme – destinado aos que nos confiam suas histórias e também aos que vão lê-las.
“Todo ser humano tem potencial para elevar ou esmagar o outro.”
Sonia Zaghetto
Eu e Guilherme vamos publicar, semanalmente, algumas das histórias que constarão do nosso livro. Elas traduzem profundas experiências, nas quais há grande sofrimento. Trazê-las à luz do dia é um desafio em múltiplos aspectos e sobre eles refletimos cuidadosamente. Primeiro porque a exposição nas redes sociais corresponde a submeter-se a julgamento constante, na maior parte das vezes apressado, frequentemente injusto e não raro cruel. A ignorância e a arrogância não se intimidam de se manifestar.
Assim, nós e os nossos entrevistados corremos o risco de sermos analisados de forma rasa e inconsequente.
Decidimos pagar esse tributo.
Em primeiro lugar porque é um serviço que poderá vir a ser útil a outras pessoas submetidas a processos semelhantes, oferecendo-lhes a possibilidade de se tornarem mais conscientes da violência que marca relacionamentos próprios e alheios. Em segundo lugar há a possibilidade de servir como alerta para futuras vítimas.
Temos recebido dezenas de relatos, vindos de todo o país e até do exterior. São de amigos e de desconhecidos, de todos os gêneros e orientações sexuais. A todos damos o mesmo tratamento: sigilo da fonte, como determina o código de ética jornalística; e de sigilo médico.
No campo pessoal, optamos por manter o necessário profissionalismo, mas não nos esquivamos da atitude de empatia, acolhimento e gratidão a cada um que nos chega ofertando sua voz marcada pela dor.
Considero um privilégio receber de um ser humano o testemunho de sua confiança já tão violada e o gesto de doação que é, superando os próprios traumas, compartilhar com outras pessoas sua experiência, a fim de evitar que haja novas vítimas.
E ao dizer isto trago um alerta importante: atenção, por favor às palavras nos comentários. Pessoas muito feridas estão lendo. Não são personagens fictícios. É gente real, que carrega marcas fundas. Não merecem ser crucificados em praça pública em nenhuma circunstância, especialmente quando revelam o conteúdo de seu cálice de amarguras a fim de que outros não o bebam.
O amor nos enriquece as vivências e o sentimento de compreensão faz milagres no campo do entendimento mútuo. Calçar os sapatos alheios nos faz bem: oferece uma nova perspectiva. “E se fosse eu a vivenciar tais coisas? Como gostaria de ser analisado quando me expusesse publicamente, em busca de apoio e solidariedade?” são perguntas inadiáveis.
Minha vida tem sido uma jornada de autodescoberta. Considero que todos os episódios que me aconteceram – inclusive aqueles em que feri ou fui ferida – constituem a preciosa matéria da experiência. Emerge-se desses episódios muito mais sábio, menos julgador, mais consciente dos condicionamentos que desabam sobre nós desde que nascemos neste mundo. Isso é essencial para o trabalho de um jornalista.
Exatamente por isso, esta série não se destina a demonizar ou santificar as pessoas de acordo com o seu gênero. Essa é uma leitura rasa. Não creio que o gênero nos torne bandidos ou mocinhos, como se fôssemos personagens de filme B sem aprofundamento psicológico.
Parece-me óbvio que todo ser humano tem potencial para elevar ou esmagar o outro. É o aspecto humano que me interessa nisso tudo. Está na minha literatura “de ficção” e está no trabalho como jornalista, que documenta com respeito, seriedade e compaixão o drama dos meus contemporâneos.
Conheci homens e mulheres extraordinários, inspiradores e de caráter exemplar. Conheci homens e mulheres frágeis, estrangulados por parceiros, pais e amigos cruéis. Conheci homens e mulheres perversos, capazes de destruir a vida alheia sem titubear.
No entanto, percebo que graças a históricos condicionamentos, nós, mulheres, por vezes somos vulneráveis demais, crédulas em excesso, românticas até o nível do prejuízo. Nós, mulheres, somos a esmagadora maioria dentre as vítimas de abusos físicos, psicológicos e financeiros que nos têm chegado.
A série sobre relacionamentos abusivos, portanto, visa promover a reflexão, convidar ao exame das situações, trazer informação de qualidade. Não é o objetivo espalhar a semente do ódio gratuito ou fazer generalizações que não resistem a um exame acurado.
É meu tributo a essa Terra onde vim passar algum tempo. Sou visita por aqui. Ao sair, pretendo ser como aquele hóspede que encontrou muitas lembranças (belas e feias) dos antigos e dos atuais hóspedes, escolheu o que considerava precioso, aprendeu muito e pretende deixar algo positivo para os que ficam.
Sem pretensão, sem ares de dona da verdade. Apenas movida por um sentimento de humildade e de gratidão pela oportunidade de estar aqui aprendendo. (SZ)
“A vida é cheia de sofrimento. É inevitável que ela doa”
Guilherme Spadini
Quando a Sônia me convidou para participar da série Abusadas eu soube, imediatamente, que não poderia recusar. O tema é fascinante, urgente e importante de forma muito concreta. Na minha prática, como psiquiatra e psicoterapeuta, já atendi dezenas, se não centenas de casos de abuso físico, psicológico e moral. Mas o meu trabalho é sigiloso, pessoal, voltado para o cuidado individual. Eu posso comentar, no máximo, sobre o meu espanto com a quantidade, a assustadora frequência e a desconfortável banalidade desses casos. Eles estão por toda a parte, afetam qualquer um, e se escondem com extrema facilidade. Então, a oportunidade de falar sobre isso a partir de outros casos, que não me foram confidenciados no exercício da profissão, é fascinante. E uma que eu abraço com um senso de missão. Quem puder falar sobre isso, deve. Pela chance de afetar uma pessoa, que se salve de um relacionamento infernal.
Ao mesmo tempo, eu sabia que estaríamos mexendo em um vespeiro. Para ser sincero, desde o convite eu me sinto mobilizado – lendo, estudando, conversando e, mais que tudo, pensando. Mas, também, um pouco assustado, em estado de alerta. Porque vamos falar de um assunto que machuca. Para fazer isso, é preciso cuidado, atenção, precisão. Mais que tudo, é preciso carinho.
A vida é cheia de sofrimento. É inevitável que ela doa. Nossa natureza física determina que vivamos em constante esforço, enfrentando crescentes desafios, até que, eventualmente, tudo termine. Mas é da nossa natureza humana que preenchamos todos os espaços possíveis dessa luta com afetos. É porque amamos que seguimos em frente. O carinho que, milagrosamente, temos uns pelos outros, é o que torna todo o sofrimento legítimo da vida suportável. E é da falta dele que todo o sofrimento ilegítimo advém.
Digo isso porque iremos falar de situações horríveis de dor e sofrimento. E iremos nos perguntar “como isso é possível?”. E, embora possamos vir a analisar muitas hipóteses para essa pergunta, há uma resposta que é sempre válida: isso só é possível na ausência do amor. Pode parecer uma frase piegas, ou óbvia. Mas ela está no cerne da questão. Porque em todos esses casos, em algum momento, a violência foi confundida com amor, o egoísmo foi confundido com cuidado, e o medo, com devoção.
Por isso, enquanto me preparo para fazer alguns esclarecimentos importantes sobre minha participação nesse projeto, o primeiro e mais importante deles é esse: que tudo o que eu escrever aqui virá de um compromisso inequívoco de carinho, suporte e acolhimento. Não haverá espaço aqui para atribuição de culpa, julgamentos moralistas, incitações à raiva ou violência, nem sectarismos de qualquer tipo. Tudo virá de um profundo e sincero desejo de conhecer, compreender e, de alguma forma, acolher toda a experiência humana revelada por esses relatos.
Outro esclarecimento importante é sobre a natureza do meu trabalho. Devido à minha formação, temo que meus comentários e reflexões sobre os casos possam ser lidos como tentativas de analisar pessoas específicas, afinal, os relatos são reais, e os personagens são indivíduos reais. Essa é uma angústia que sempre tenho quando dou entrevistas ou discuto qualquer tema na mídia ou redes sociais. A verdade é que toda a minha formação é voltada para o cuidado do indivíduo, em um processo muito íntimo e particular. Por isso acredito que nós, psiquiatras e psicoterapeutas, talvez sejamos os profissionais menos aptos a falar sobre as generalidades, a fazer análises sociais ou comentar sobre o comportamento de pessoas com quem nunca conversamos.
Admito, no entanto, que nossa formação e, no mais das vezes, inclinação pessoal, nos leva a conhecer muito sobre o ser humano, e nos dá insights preciosos, vindos de pontos de vista privilegiados, sobre nossos afetos e comportamentos. Mas é interessante que são dois conjuntos de habilidades muito diferentes, aquele que exercitamos no dia a dia de consultórios, e aquele que apreendemos de refletir sobre o humano.
Para mim, pessoalmente, é muito importante que fique bem claro o quanto usarei só esse segundo conjunto de habilidades neste projeto. É claro que minha prática clínica se soma a toda a minha experiência de vida, convívio social e leituras que alimentam esse segundo conjunto. Mas eu jamais irei analisar, diagnosticar ou comentar o comportamento de nenhum indivíduo neste trabalho.
O último caso relatado, por exemplo, o da amazona que escapou de repetidas tentativas de golpes. O que eu posso saber sobre ela? Nada. De verdade, nada. Nem sobre ela, nem sobre os golpistas e aproveitadores individualmente.
É uma característica do processo psicoterápico que ele só pode operar sobre a pessoa que se submete a ele. Se a amazona estivesse em meu consultório, nós estaríamos centrados nela, em o que ela precisa enxergar sobre si mesma, e mudar em si mesma. É justo que ela é que tenha de mudar? Não, mas nesse sentido psicoterapia não tem muito a ver com justiça. Nenhuma psicoterapia vai mudar os outros, ou a sociedade, ou o mundo. Já é bem difícil mudar o indivíduo.
Por isso que a análise desse caso não tem muito a ver com a experiência de um psiquiatra ou psicoterapeuta. Ela deve vir de outra perspectiva, que não está amarrada ao indivíduo, mas ao humano. É uma história que fala de nossa necessidade de amor, e de o quanto essa necessidade nos afeta. Podemos pensar na nossa necessidade de amor como uma abertura, um convite. Dessa forma, ela pode nos afetar de diversas maneiras, a depender de o que passar por essa abertura. Ela pode nos causar tanto sofrimento. Ao mesmo tempo, ela é toda nossa possibilidade de alegria.
Chamamos essa necessidade, pejorativamente, de carência. Mas somos todos carentes. Nunca na minha vida conheci alguém sem carência. Eu sei que sou muito carente. Essa necessidade de amor é fundamental, constituinte do humano. Essa abertura é que nos permite escapar da prisão de nossos sentidos, experimentar o mundo por outros olhos, comunicar, filosofar, escrever poesia e fazer música. Por isso a história da amazona é tão trágica. Ela descreveu seu fechamento, provocado pela repetida exposição ao fechamento. Porque todos esses golpistas e aproveitadores são fechados. Imagine o horror de ser alguém tão triste, tão aleijado, que diante da abertura para o amor, só consegue trazer egoísmo.
Podemos deixar que essa história nos afete, se estivermos abertos. Sem julgamentos. Sem análises. Sem interpretações. Podemos apenas pensar, talvez, sobre nós mesmos. Sobre o quanto ainda somos capazes de nos abrir, de nos maravilhar com o encontro com o humano. Ou sobre o quanto nos fechamos, ao longo da vida, diante das dores e desencantos. E até, talvez, sobre quantas vezes nós mesmos já levamos egoísmo a uma janela aberta para o amor. (GS)
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Pintura: Émile Renouf. Un Coup de Main.
Poxa! Gostei deste outro olhar sendo acrescentado! Ganhamos todos!!!!
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Desejo muito sucesso a vocês. Com certeza esse trabalho irá ajudar muitas mulheres que já passaram por essas situações, como também possibilitará que muitas consigam sair ou evitar as armadilhas.
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Que delícias de textos. Coerência e cuidados traduzidos por palavras positivas e alentadoras.
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Algumas vezes a gente precisa apenas que alguém nos ouça. Obrigada.
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Textos de muita inteligência, clareza e ao mesmo tempo sensibilidade. Só posso agradecer por mais esse elixir de sabedoria!
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Estes textos são extremamente relevantes, num país misógino, onde a cada 8 minutos uma mulher é violentada e outras tantas são mortas diariamente. Mulheres que estejam sob alguma forma de julgo precisam saber que não estão sozinhas e que denunciar faz parte do processo de liberação e cura.
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