Nas Metamorfoses, o poeta romano Ovídio, conta um dos mais significativos mitos da Antiguidade: o rapto de Perséfone por Hades, deus do mundo inferior. A moça é levada para a região infernal, de sombras e uivos, e a ira de sua mãe, a deusa Deméter, se espalha sobre a Terra (leia aqui sobre a história greco-romana). É Deméter, que preside a natureza e a agricultura, quem resgata a filha e a traz de volta ao mundo. Ela faz as colheitas morrerem, a fome se instalar e os deuses não receberem seu tributo costumeiro. Vencido, Zeus determina a volta da moça, mas Perséfone comera algumas sementes de romã. A lei do Olimpo determinava que se alguém comesse na terra dos mortos, permaneceria com os mortos. O fato de ela ter comido as sementes é interpretado como expressão da vontade da filha de permanecer com o marido no mundo das sombras. Perséfone então fica dividida entre a mãe e o marido.
Este significativo e forte mito milenar foi escolhido por mim para representar a história de hoje da série Abusadas, sobre pessoas vítimas de abusos físicos, psicológicos e financeiros por parte de seus parceiros. Narrado em primeira pessoa por uma mãe paulistana que também resgatou a filha do inferno, o texto original recebeu pequenas alterações, a fim de proteger a identidade dos envolvidos.
“Ela tinha quinze anos em 2018 e muitos sonhos. Conheceu um rapaz que parecia gentil, educado e cuidadoso com ela. Ele a levava para encontros fofos, piqueniques e jantares bonitinhos. Apresentava a todos os amigos, dizia que ela era linda.
Ele veio na minha casa, se apresentou, disse que adorava minha filha e fez amizade com meu marido. Sempre muito simpático. Minha filha parecia feliz, falava que estava apaixonada, que ele gostava muito dela e sorria contente ao sair com ele.
Então, sem aviso, as coisas mudaram. Entenda que minha filha é uma moça bonita, de longos cabelos loiros, olhos castanhos claros e sorriso ainda um pouco infantil. Ela é alta, magra sem exagero, pois tinha, à época, 1,73 de altura e pesava cerca de 60 Kg. Ela adorava tomar sol, viajar, desenhar, andar de skate e dançar.
Eu demorei tanto a perceber! A culpa que assola um pai, ou mãe, irmão e outros parentes pode ser bem destrutiva. Alguns meses após o início do namoro, com direito a pedido formal, flores, anel de compromisso e todas essas coisas que os jovens gostam, minha filha parou de usar maquiagem. Depois, não punha mais shorts, nem blusas de alcinhas ou decotes. Desistiu das calças justas que antes gostava. Agora somente usava calças cargo, camisetas três números maiores que ela e prendia sem cuidado o cabelo, que agora parecia seco e desidratado. Os brincos, anéis e pulseiras sumiram.
Eu perguntei porque ela não ia mais ao clube ou dançava mais. Ela disse que não queria causar má impressão, que expor o corpo era coisa de “puta”, que seu namorado havia dito que ele a estava protegendo do “horror do mundo”, afinal de contas, a imagem da mulher depende de como ela se veste, se usa maquiagem ou se sorri mais ou menos.
Ela só queria agradar o sujeito elegante de sorriso fácil. Ela não queria ser julgada por um batom escuro ou um short. Meus alertas acenderam. Tentei falar que o corpo era dela, não dele. Que ninguém tinha o direito que julgá-la por roupas e maquiagem e ela riu dizendo que morávamos no Brasil, a terra da cantada baixa e dos homens escrotos (palavras dela) que não podiam ver uma garota pela frente. Garantiu que preferia mesmo evitar.
Eu deveria ter insistido. Não demorou para ele pedir para ela mandar fotos de que estava em seu quarto e não em alguma balada, afinal de contas, ele não podia confiar que ela não o obedecia… Note a palavra: obedecia. E minha filha mandava fotos dela em sua cama. Ele respondia que era bom ela “não sair pra ir atrás de macho” e ela não entendia o motivo desse ciúme todo. Só fiquei sabendo disso muito tempo depois.
Assisti, sem saber o que fazer, a minha filha parar de se arrumar, de hidratar o cabelo. Ela não ficava mais feliz com suas antigas roupas preferidas porque o namorado achava que desejar chamar a atenção a transformava em uma “piranha sedenta por sexo”.
Ah se eu tivesse sabido… Mas na época eu nem sabia que ela fazia sexo. Ela nunca me disse. Eu não sabia o que fazer. Tentei conversar com ela e perguntei se havia algo que gostaria de me contar, que eu a achava bonita com ou sem maquiagem, com roupas largas ou não, mas ela parecia esquisita. Respondeu que ele apenas estava cuidando dela, afinal de contas ele a amava mais que tudo. Diante dessa frase eu franzi o cenho: isso é amor?
Não demorou muito e ela comentou por acaso que já não podia mais conversar com seus amigos porque todos eles só queriam se aproveitar dela e o namorado é o único ser na terra capaz de amá-la. Acrescentou que ela era tão cheia de defeitos que ninguém iria querer estar com ela.
Por fim, minha filha começou a dizer, com todas as letras, que era feia, sem graça, insignificante, fraca e que o namorado era a única pessoa que poderia gostar daquele “resto”. Eu descobri que ele repetia isso para ela todos os dias até que ela acreditou.
Um dia disse que talvez fosse melhor apagar todas as suas redes sociais porque são “cheias de gente ruim” que não queriam o bem dela. Tomei um susto. Ela adorava postar no Instagram suas fotos rindo e brincando, suas roupas novas, suas maquiagens inovadoras (ela sabe se maquiar muito bem), suas coreografias de músicas famosas.
Eu deveria ter agido antes, hoje sei. Agido quando ela emagreceu dez quilos porque o namorado disse que ela estava gorda. Agora pesava 48 quilos e achava que não estava magra o bastante.
Eu sabia que estava tudo errado, mas não sabia exatamente o que fazer. Entendam que eu tenho depressão e nem sempre estou no meu melhor. Não foi fácil. Nessa época, ela começou a vomitar após as refeições; a ter crises de ansiedade; a se assustar com barulhos que antes não a perturbavam. Teve cáries e desgaste do esmalte dos dentes. Tive muito medo. Bulimia é algo sério. Anorexia também. Fui conversar com ela, tentei intervir e ela respondeu que eu não entendia nada. Minha filha me xingou de idiota, intrometida, antiquada e de omissa porque “você passou a vida toda trabalhando até tarde e saindo cedo, quem você pensa que é pra dar opinião na minha vida? Você nem me conhece, mãe!”
Eu não a conhecia mais. Ela gritou mais de uma vez que me odiava por tentar fazê-la comer, mesmo que fosse um caldo de legumes, uma fruta, um iogurte. Ela xingava, dizendo que eu era uma velha gorda e não ia transformá-la em alguém igual a mim. Eu chorava escondido porque eu não sabia mais quem era aquela menina – a minha menina.
Minha filha parou de sorrir. Saía para encontrar com o namorado com o olhar baixo, roupas escuras e garantindo que já havia conversado com ele sobre algumas coisas que me preocupavam e que tudo ficaria bem. Mas voltava triste, cansada e dizia que só queria dormir.
Um dia, quando ela dormia mais que o normal, mais de doze horas seguidas, fui ao quarto dela e levantei as roupas com cuidado. Havia hematomas nos braços, na barriga, nas coxas. Os ossinhos das costelas aparentes, a barriga funda, as pernas muito finas.
Chamei um conhecido e clonei o celular dela porque eu precisava saber. Era minha obrigação saber. Ela era vítima de abuso e eu precisava cuidar dela porque sabia muito bem que, na mente dela, estava tudo certo.
No celular dela, eu conheci o horror. Descobri que ele espancava minha filha, forçava-a a obedecer com chantagens de fotos íntimas, forçava sexo porque era “por amor!”. Ele a enchia de maconha para ela ficar “mansa”. Ele drogava minha filha.
Nas mensagens chamava minha menina de piranha, burra, feia, gorda. Repetia que ela não valia nada, que era desinteressante, que deveria ficar sempre calada porque só falava bobagens, que não tinha opinião porque era burra, que ela deveria agradecer por ele ainda se interessar por ela que era tão feia, tão sem graça.
Minha filha se formou em inglês numa das melhores escolas do Brasil e ele corrigia o inglês dela, sem nunca ter estudado, porque ela era uma idiota, segundo ele. Ele gritou com ela em um restaurante (ela me contou meses depois) porque ela chegou antes dele e pediu um refrigerante enquanto esperava. Ele entornou o copo na mesa dizendo que ela não podia beber refrigerante porque ficaria com mais celulite, seria ainda mais feia e ele não queria passar vergonha.
Quase um ano desse relacionamento destrutivo e eu não podia mais ficar parada vendo minha filha definhar. Fui até o quarto dela enquanto ela se arrumava para sair e disse que ela não podia ir. Vi o olhar apavorado, o medo, os cabelos secos, os olhos parecendo sem brilho, as roupas largas, as marcas de cortes nos braços e nas pernas. Ela gritou comigo e disse que eu não entendia nada. Gritou de novo e de novo dizendo que me odiava. Eu interpretei que ela estava implorando por ajuda e com medo demais pra dizer com todas as palavras. Eu tranquei a porta e chamei meu marido, contando por alto, sem muitos detalhes, o que estava havendo e que aquele sujeito nunca mais chegaria perto dela.
Meu marido duvidou. Ele achou que era exagero meu e dela. Eu não sei se consigo perdoá-lo por isso. Minha filha socou a porta, gritou, chorou, reclamou, disse que nos odiava.
Eu só via uma menina enjaulada por um homem abusivo. Ela estava com dezesseis anos e os cabelos sedosos pareciam palha seca, o corpo não tinha mais curvas femininas, o osso do quadril aparecia, assim como as costelas e os cotovelos pontudos. Sem sol, sem exercícios, sem andar de skate que ela adorava, sem maquiagem, sem roupas bonitas, sem nada. Ele tirou tudo dela, inclusive a autoestima que já não era boa. Ela socou tanto a porta que luxou as mãos. Bloqueei o número dele, mudei o número do telefone dela e a mantive em casa, ainda meio atônita e perdida. Não me arrependo de ter mantido minha filha sem contato com ele, porque ela não conseguia perceber o quão abusivo e criminoso o namorado era.
No início de 2019 – nunca vou esquecer – o tal namorado apareceu na porta da minha casa. Expliquei que ele não poderia mais vê-la. Ele me olhou com ódio e falou que ela tinha o “direito” de escolher seu destino. Respondi que tirara fotos dos hematomas. Ele disse que tinha contatos, que conhecia gente “da pesada” e garantiu que jamais seria punido. Por fim, apelou, deu de ombros e falou que a culpa era da minha filha, que adorava ser tratada daquela forma. Eu realmente pensei em homicídio naquele instante e disse a ele que nunca mais chegaria perto dela. Ele riu dizendo que ela iria atrás dele porque ela o amava e ele também a amava, embora ela fosse apenas uma “vagabunda”.
Os meses passaram muito devagar. O tratamento psicológico e psiquiátrico era intenso. Ela tomava remédios. O namoro se juntou a traumas anteriores, decorrentes de bullying na escola. Achava que era feia, que precisava alisar o cabelo, e durante um período chegou a se cortar nos braços e pernas usando a lâmina de apontadores de lápis. Eu a levei, na ocasião, a psicólogos e psiquiatras. Melhorou, mas o episódio com o namorado reavivou tudo. Ela tentou suicídio e tive que levá-la a um hospital para uma mini cirurgia de emergência porque ela cortou o braço tão profundamente que precisaram costurá-la. No hospital, ela ria, dava gargalhadas. Cogitou-se interná-la, porque ela olhava para as agulhas e dizia que nem precisava de anestesia porque não ia doer mais do que a alma dela doía. Foi um dos piores dias da minha vida.
Minha filha tem dezenas de cortes nos braços e pernas. Ela costuma esconder bem, mas as cicatrizes estão todas lá. Ela toma remédios, vai ao psiquiatra uma vez por mês e faz terapia duas vezes por semana. O pai dela não aceita o diagnóstico. Acha que é frescura da adolescência e ela tem pavor dele. Hoje, qualquer figura masculina que se aproxima dela dispara crises de ansiedade. Ela não deixa ninguém abraçá-la, chora dormindo, acorda gritando, tem surtos terríveis nos quais pede para morrer.
Graças à terapia ela começou a me contar o que ocorreu. Cárcere privado, surras, o ex-namorado que a oferecia para homens aleatórios em troca de drogas. Ouvi ela contar que ele a amarrava e a estuprava porque ela “gostava” e dizia que era claro que ela era apenas “uma puta que gostava de violência”. Escutei minha filha dizer que ele nunca usava preservativos porque era “coisa de bicha”. Ouvi minha filha contar das surras, dos enforcamentos e de ela ficar sem comer por dois dias para “aprender a respeitar”. Com medo de engravidar, ela tomava pílulas do dia seguinte sem parar.
Onde eu, mãe, estava? Acreditando que ela tinha ido acampar com um grupo do colégio, achando que as amigas que ela citava não eram coniventes.
Estamos em 2021 e ainda temos muito caminho pela frente. O monstro continuou sua vida e minha filha enfrentou muitas crises. Apesar de tudo, ela se alterna entre o medo e o amor que sente pelo ex-namorado. Eu não posso falar nada no meu trabalho, aliás com ninguém, além dos médicos e psicólogos. Eu me sinto só: nem mesmo meu marido compreende a extensão do que vivemos. Eu só tenho o silêncio.”
Pintura: Frederic Leighton, “A volta de Perséfone”, 1891
Parabéns Sônia , assunto delicado precisa ser tratado c seriedade e profissionalismo.Qtas e qtas famílias dilaceradas p situações semelhantes.Qtas jovens militando p esses caminhos sombrios. Almas frágeis e sem sustentação. Já ouvi mtos relatos q me lembram o fato narrado . Como precisamos estar atentas enqto maes .
CurtirCurtido por 1 pessoa
Importantíssimo divulgar este tipo de assunto. Quanta tragédia, quanta dor. E que solidão dessa mãe, é uma das coisas que me pareceu mais terrível além da tragédia da moça, é claro. Temos que ficar atentas,sempre, até para estender a mão se descobrirmos algo semelhante entre nossas amizades. Quantas pessoas talvez já nos tenham pedido socorro e não percebemos…
CurtirCurtir
E que droga de marido e de pai é esse que opta por negar as evidências? Melhor que ter o trabalho de cuidar da filha, né? – coitadas dessas duas!
CurtirCurtir
Passo mais ou menos pela mesma situação que essa mãe…a sensação de impotência é tão grande. Tratamentos…remedios…muitos cortes…autoagressão. Por mais que a gente faça, que apoie o passo tem que ser delas, na cabeça delas nada funcionará, nada trará melhoras, não adianta tentar nada…enfim é o que já falei o sentimento de impotência é grande, mas digo e repito para ela:” Eu jamais desistirei de você, eu tenho fé por mim e por você”
❤️
CurtirCurtir
Admirável Maria, não desista mesmo. Sinto muito por você passar por isso: deve ser dilacerante. Coragem, força. Receba um abraço solidário. Estou torcendo por você.
CurtirCurtir