O episódio de hoje de Abusadas – série jornalística sobre pessoas que sofrem abusos físicos, psicológicos e financeiros de parceiros – narra a experiência de três mulheres que foram alvo de homens que conheceram no Facebook. Uma delas teve a vida destruída e outra até hoje sofre os abalos emocionais da experiência.
No dia 4 de fevereiro de 2016, a aposentada Ana Luiza (nome fictício) publicou em seu perfil, no Facebook, uma carta endereçada ao presidente dos Estados Unidos. Em sua ingenuidade, a mulher na faixa de 50 anos e moradora de uma cidade do interior, tentava denunciar o que acreditava ser o perfil de seu namorado virtual, um capitão da Marinha dos EUA. Ana havia pedido empréstimos de pelo menos 1.200 dólares e enviado para o golpista. Chegou a buscar a ajuda de um advogado e descobriu que jamais recuperaria o dinheiro. Seis dias depois da postagem, Ana Luiza estava morta. O suicídio foi o capítulo final da história de uma mulher que acreditou no sonho romântico de um amor tardio. Ana foi vítima de um golpista, um tipo conhecido como scammer (para saber mais, leia aqui) cuja estrategia é extorquir dinheiro após estabelecer um relacionamento romântico com a vítima. Ana Luiza não está sozinha. Outras mulheres foram igualmente vítimas de homens inescrupulosos nas redes sociais. Por conhecerem histórias de relacionamentos felizes entre pessoas que se conheceram pela Internet, acreditaram em golpistas e manipuladores. Foi o caso de Mariana e Bianca, que se relacionaram com o mesmo homem, um golpista cujo perfil ainda está ativo no Facebook.
No caso de Ana, a postagem dela explica o que ocorreu. “Queria fazer uma denúncia ao presidente dos Estados Unidos. Sou brasileira e fui lesada pelo capitão da Marinha Richard Philip. Ele me disse que gostaria de vir ao Brasil para vivermos juntos, mas para isso tive que fazer um depósito de 600 dólares que era para ele receber 8 milhões e meio”.
Ana Luiza fez o depósito inicial, mas o golpista pediu mais 600 dólares, alegando que era para seu advogado liberar os U$ 8,5 milhões. A aposentada acreditou que o dinheiro seria depositado na conta dela e com ele compraria uma casa para viver com o militar americano. Sua carta ao presidente dos EUA (leia o print ao fim deste texto) atesta sua inocência e desamparo: “Tenho as fotos de todos os certificados (…) o capitão Richard Philip tirou todo meu dinheiro (…) Vou até as últimas consequências, pois tudo não passou de uma maneira de mandar dinheiro para o capitão Richard Philip. Tenho até uma foto do Sr. presidente com o capitão Richard Philip (…) sou honestamente aposentada, tenho todos os números dos meus documentos enviados (…) só queria comunicar, Sr. presidente, que há justiça aqui no Brasil (…) Como um presidente permite expor sua imagem com o capitão Richard?”.
Mesmo após saber que foi alvo de um golpe, Ana continuou a acreditar em parte da história, inclusive nas montagens fotográficas que recebeu. Em sua carta pública, é possível perceber que o golpista criou um email especial para ela, pediu seus documentos, colocou-a em contato com um cúmplice, que supostamente seria seu advogado. No seu perfil – no qual ela aparece abraçando a neta, interagindo com amigos, a filha e a mãe idosa – Ana fez várias marcações do namorado virtual, cujo perfil hoje está extinto. Sob o peso da decepção, fortemente endividada e ciente de que não recuperaria o dinheiro, ela colocou a mãe em um asilo e pôs fim à própria vida.
Menos trágico, mas ainda assim doloroso, foi o resultado do namoro de Mariana. Em 2017, ela e outras pessoas comentavam na postagem de um amigo quando um certo Luiz começou a interagir com eles. “Ele parecia um cara muito interessante, com um senso de humor parecido com o meu, meio debochado. A primeira abordagem já veio sob a forma de gracinhas, tipo “poxa, fulano, escondendo suas amigas inteligentes e engraçadas?”
Logo, Luiz passou a repetir brincadeiras com um componente de sedução: “Ah, mulher assim, inteligente e espirituosa, é pra casar”. Pouco tempo depois, mandou um pedido de amizade. “Aceitei de cara. Tínhamos amigos em comum, ele era divertido, culto, bom papo e muito inteligente. Ficamos de conversa nas postagens e uns dias depois ele me chamou no Messenger: mil elogios sobre minha inteligência, meu humor, esse papinho furado. Eu sou solteira, não estava fazendo nada mesmo, então dei trela”, conta Mariana.
Logo estavam conversando diariamente no WhatsApp. Não demorou e a conversa ficou picante. Luiz dizia estar em Dubai, mandou fotos no quarto do hotel, e informou estar em um trabalho de “reposicionamento no mercado”.
Divorciado, publicitário, na faixa de 60 anos, Luiz se gabava de ser responsável por algumas das maiores e melhores campanhas do Brasil. “Tinha um ego maior do que o mundo. Era um tal de “eu fiz a campanha tal, ganhei o prêmio xis”. Uma conversa ótima, mas eu não nasci ontem: sabia que muita coisa ali era papo furado”.
Logo passaram a conversar por vídeo, via Skype, e sexo passou a ser um dos itens da conversa. Luiz mantinha o clima de sedução: “Há muito tempo não me sinto tão bem com uma mulher. Você é especial”, eram frases recorrentes. “Por mais que a gente tenha uma intuição que é conversa mole, a gente gosta de ouvir. Era gostoso, às vezes era a madrugada toda de papo, ele contando as histórias dele, das campanhas publicitárias. Tínhamos muito assunto, fora a sacanagem, que era bem legal”, admite Mariana.
Luiz costumava repetir que assim que voltasse ao Brasil iria vê-la, que desejava casar com ela e “cuidar” de Mariana pelo resto da vida. Disse que era amigo de uma famosa personalidade a quem pretendia visitar em companhia de Mariana: “Estou devendo uma visita, e você irá comigo, como minha mulher”, repetia, temperando tudo com elogios em italiano, que ele dizia ser sua língua nativa.
O namorado virtual afirmava não ver a hora de voltar ao Brasil e encontrar Mariana: “Não quero saber: quando eu chegar aí, você vai se mudar para o meu hotel e vamos ficar, primeiramente, uns três dias agarrados na cama. Não te solto por nada. Depois vou tratar dos meus negócios.”
Os planos e promessas eram cada vez mais mirabolantes. Falavam de viagens pela Europa e passeios românticos a São Petersburgo. Numa ocasião, Luiz chegou a dizer a ela que era “envolvido com a máfia russa”, da qual recebia proteção. “Com toda honestidade, não preciso mentir, eu sabia que era tudo invenção, mas quer saber? Tudo bem, eu era verdadeira, tudo que falei sobre os meus sentimentos era verdade. Repito, o ego da gente gosta de elogio e juras de amor. É um afago no meio de tantos vazios.”
O relacionamento já durava três meses, de muita intensidade, com as conversas ocorrendo todos os dias e o dia inteiro. “Era manhã, tarde, noite e madrugada adentro. Todas as manhãs, antes de eu sair para trabalhar, ele me chamava no Skype para me desejar “bom-dia, carina mia”.
Tudo parecia ir bem, até o dia em que Mariana enviou um “Bom dia, amore mio” e Luiz não respondeu. Espantada, descobriu que havia sido bloqueada por ele em todas as redes sociais: Skype, WhatsApp, Facebook, Messenger e no Tumblr, onde mantinham uma “página de sacanagem” para se provocarem mutuamente.
“Levei um susto, mas mesmo bloqueada deixei uma mensagem no WhatsApp dizendo: Tá bom, o brinquedo cansou? Bastava ser adulto e ter dado tchau”, relata.
Mariana garante que não se desesperou, mas é perceptível o efeito do gesto de desprezo. Meses depois ela se descobriu desbloqueada ao ler um comentário dele na postagem de uma amiga no Facebook. A abordagem parecia bastante com a usada com ela mesma: comentários românticos (Mariana prefere o adjetivo “melosos”), sedução, frases inteligentes destinadas a impressionar.
Não demorou e Luiz voltou a pedir amizade a ela. Disse que sabia não ter sido correto, explicou que havia ficado doente e que não quis envolver Mariana nos seus problemas. “Ele me disse que estava com os dias contados e sentiu necessidade de se aproximar de mim, mas que não iria mais me envolver. Só não queria terminar seus dias sem o meu perdão. Aceitei o pedido de amizade, mas jamais interagimos como antes”, narra Mariana, que a essa altura estava totalmente descrente: “Virou chacota, né? Eu sabia que era mentira. Não tinha doença nenhuma, mas o calhorda dizia que estava com câncer e nos últimos tempos de vida. Enquanto isso, eu o via com a minha amiga no maior chamego.
A amiga de Mariana era Bianca. Semanas depois, esta telefonou e perguntou sem rodeios se ela conhecia Luiz e o que havia acontecido entre eles. Mariana contou toda a história e Bianca informou que tinha iniciado um relacionamento com Luiz. Acrescentou que estavam muito envolvidos e já tinham se encontrado algumas vezes.
Pouco tempo depois, Bianca se viu bloqueada por Luiz. A história havia se repetido. A diferença é que Bianca ficou muito mais devastada: havia terminado um casamento de 20 anos por causa do golpista e enfrentava a ira do ex-marido.
As duas amigas compararam as histórias e viram vários pontos coincidentes: os mesmos apelidos, elogios e declarações de amor, promessas de viagens e de sexo apaixonado, de morarem juntos e serem apresentadas a amigos famosos. Também notaram as diferenças: para Mariana ele se apresentava como publicitário. Para Bianca, da área de comércio exterior.
Bianca reunia um exército de admiradores no Facebook. Atleta amadora, culta e bonita, era bastante assediada, mas mantinha-se firme. O casamento de 20 anos parecia sólido, embora ela se sentisse negligenciada pelo marido.
Acostumada a se proteger, não conseguia confiar facilmente e resistia a quaisquer avanços de outros homens. O pé atrás foi derrubado pela insistência de Luiz. Bianca tentou cortar o assédio, mas a afinidade a fez baixar a guarda. Conversavam todos os dias, durante várias horas.
Nas vezes em que se viram, Luiz se declarava “apaixonadíssimo e feliz”. Ela tomou coragem e pediu a separação. “Assim que me separei, começamos a namorar. Eu vi a mudança nele. Um homem que parecia “cinza” e envelhecidíssimo no primeiro encontro, virou outro. Ele dizia que todos viam a alegria dele.”
O relacionamento parecia perfeito. Luiz se mostrava muito carinhoso, o sexo era excelente e o casal fazia planos de morar junto em outra cidade, onde ele disse ter amigos a quem apresentaria Bianca, a fim de ela ter um emprego.
Ele se apresentava como um viciado em trabalho que trabalhava com exportação por isso não tinha folga nos fins de semana: “Sábado e domingo, na China e nos países árabes, não são dias de descanso”, disse. Bianca acreditou.
Depois de algum tempo, Luiz começou a dizer que a ex esposa “ficou doida” quando soube do novo relacionamento dele. Haviam sido casados por 40 anos e estariam separados há três.
Envolvida pela conversa, Bianca relevou alguns sinais, como o fato de ele dizer que era divorciado mas morava na mesma casa que a ex-mulher, por questões financeiras; de nunca passarem a noite juntos; de suas roupas serem gastas e de sempre “esquecer a carteira” e prometier pagar no dia seguinte. Ela estranhou somente quando ele a incentivou ela a “tirar tudo” do ex marido – casa, carro, dinheiro. Bianca se recusou.
Um dia, Luiz disse que precisava fazer uma transferência de dinheiro e não estava conseguindo. A situação acendeu um sinal vermelho para Bianca. Desconfiada, respondeu que só poderia ajudá-lo alguns dias depois.
Luiz sumiu por três semanas. Disse a Bianca que estava com muito trabalho, pedia confiança e paciência e assegurava que estava construindo o futuro deles “pois agora tinha um motivo pra trabalhar tanto”. Alegava que perdera tudo na separação e precisava refazer patrimônio, pois queria dar a ela “uma vida boa e tranquila”.
Tudo foi bem até a manhã em que, ao acordar, Bianca mandou um “te amo” no WhatsApp. Recebeu uma mensagem que a deixou sem chão: “Bianca, estou vivendo um momento particularmente delicado, pessoal e profissionalmente, o que tem me obrigado a me concentrar inteiramente no trabalho, como você é testemunha nas últimas semanas, e este quadro não irá se alterar até pelo menos o final do ano, sendo otimista ...
Não tenho condições de manter um relacionamento que requer atenção e cuidados recíprocos, que tem chances nulas de acontecer e prosperar por conta deste quadro.
Por isto, estou lhe escrevendo para dizer que minha decisão é me afastar, para cada um seguir sua vida…
Peço que compreenda que esta decisão foi bastante difícil, mas é a decisão que foi tomada no momento…
Fique bem, se cuide”.
Neste momento, Bianca percebeu que estava bloqueada em todos os lugares. Sem briga, sem razão aparente.
“Eu lembrava a todo instante que ele segurava meu rosto entre as mãos e dizia que eu podia confiar nele, que jamais me faria mal. Entrei em desespero. Fiquei totalmente sem chão quando percebi o que ele fez”, relembra.
Bianca enfrentou a situação em paralelo à ira do ex-marido – que a proibiu até mesmo de ver seus cachorros – e se refugiou na casa dos pais, desempregada, sem lugar para morar e profundamente deprimida.
Bianca e Mariana fizeram investigações e descobriram o endereço do golpista: morava em um cubículo localizado nos fundos de uma casa numa grande capital.
Descobriram, ainda, que estava endividado, não possuía sequer cartão de crédito e que era mentira a informação de que tinha dinheiro fora do Brasil. Pior: era alvo de vários processos e denúncias. Luiz era um golpista que usava a rede wi-fi de uma loja da Starbucks para seduzir suas vítimas e cuja conta de telefone era paga pela ex-esposa. Concluíram que Luiz estava procurando mulheres que o sustentassem e desistiu das duas amigas quando notou que de Mariana não iria arrancar dinheiro (ela já havia passado por uma experiência traumática anteriormente e estava alerta) e que Bianca tinha boa situação financeira graças ao marido. Separada, nada possuía.
A verdade atirou Bianca em uma espiral de desespero. “Tive muita dificuldade de acreditar que tudo era mentira. Queria entender o que houve. Eu me sentia massacrada. Íamos viver juntos e de repente descobri que era um falso executivo que morava numa casa abandonada. Nada fazia sentido, pois eu o vi feliz e se modificar”.
No ano passado, a amiga de Bianca, Mariana, publicou sua história em um grupo fechado no Facebook, avisando sobre os métodos do golpista. Vários amigos não acreditaram e mantiveram a amizade com Luiz, mas de imediato surgiram outras vítimas (algumas abordadas simultaneamente às duas amigas) e aos poucos elas mapearam o modus operandi de Luiz. É um verdadeiro ator, que sempre diz à vítima que ela é a mulher da vida dele e a seduz com conversa inteligente e fórmulas românticas. Às vezes, chega a chorar ao falar de seu amor.
Algumas mulheres ele tenta impressionar com poder, com outras usa riqueza ou boas relações. Com mulheres solteiras a abordagem é mais sexual; com as mais velhas ou casadas mostra-se mais afetuoso e intelectual. Para algumas diz morar no Brasil; a outras informa que vive no exterior. A faixa etária de mulheresestá entre 40 e 50 anos.
Para cada vítima inventa uma história de vida diferente, mas repete a vivência com “a mãe que não o amava”, da sua vida sem afeto e do avô que é seu herói.
Os pedidos de dinheiro demoram um pouco a aparecer. “Ele parece gostar de aprofundar o relacionamento e falar em casamento antes de entrar nas questões financeiras”, diz Bianca.
A terapeuta que atendeu Bianca e uma outra vítima de Luiz alerta que o golpista escolhe suas vítimas em uma faixa etária vulnerável. “Algumas mulheres pensam que nada mais vai acontecer na sua vida emocional. Ele surge com a promessa de algo há muito aguardado. É um sociopata. Mente muito, seduz e descarta. Nem é muito dinheiro o que ele pede. Acho que o golpe é também um exercício de poder. É a mesma razão de um estupro: não se trata de sexo, e sim de domínio”, pondera a psicóloga.
Bianca aos poucos se recupera. O ex-marido se reaproximou e ambos tentam reconstruir o relacionamento. Ela apagou todos os perfis nas redes sociais, faz terapia e se afastou de vários amigos. De Luiz, guarda uma profunda mágoa.
“Ele é muito envolvente e destrutivo. Perverso mesmo. Estuda o perfil e se adapta à nossa realidade. Comigo, que gosto de esportes e de animais, ele se passava por esportista e me mostrou a foto de um cachorrinho quando estava me seduzindo. Disse que o cão tinha morrido e ele nem conseguia trabalhar, de tanta dor que sentia. Hoje tenho certeza que o cão não era dele. Ele não me arrancou nada materialmente, mas já rapou quem não tinha nada e hoje está tão traumatizada quanto eu fiquei”, conta Bianca. Para ela, rememorar o que aconteceu é motivo de vergonha e dor.
Sua única razão para contar a história é prevenir futuras vítimas. “Eu tenho medo disso acontecer com outras mulheres. Fere muito a dignidade humana. Acho tristíssimo”.
***
Todos os nomes e idades são fictícios para preservar as vítimas ou seus familiares.
Abaixo estão os prints da publicação da primeira vítima citada neste texto, Ana Luiza.
Pintura principal: Eco e Narciso, de John William Waterhouse.
Que história impactante Sônia, o perfil deste sujeito é público? As pessoas têm como saber quem é este e evitá-lo ou denunciá-lo? Ótima série, abraços.
CurtirCurtir
A pior dor não é o dinheiro.
É a traição.
Acreditar no amor e na felicidade e descobrir que não existia isso, era um embuste.
Precisar sepultar um sonho e não conseguir suportar mais a vida.
CurtirCurtir