Os arados van e vén
dende Santiago a Belén.

Dende Belén a Santiago
un anxo ven en un barco.
Un barco de prata fina
que trai a door de Galicia.

(Federico García Lorca – Canzón de cuna pra Rosalía Castro)

Eu sou Maria e meu marido é José. Dizem que quando a gente nasce, a missão já vem marcada. Eu sempre soube que tinha missão neste mundo – e sou de cumprir palavra. Eu e o José nascemos de um povo que não se curva. Não nós. Nós somos os que constroem, os que tomam nas mãos a sina, os que umedecem a argila dos dias com o suor da própria testa. Deixamos a nossa terra em busca de chão estrangeiro. Tão pobres, tão jovens, com medo do sangue derramado, da fome, da crueldade dos homens. No lugar onde chegamos, tivemos uma criança. A nossa viagem, eu bem sabia, mudaria para sempre o meu destino. Faria mais: moldaria um novo mundo, criado com o sacrifício do meu corpo e muito da minha alma. Eu sou Maria, mas não a que você imagina. Sou a Maria nascida no pueblo de Bustelo, na Galícia. Meu José não é carpinteiro, embora tivesse um martelo sempre à mão para consertar a nossa pobre cama quebrada. Nós fizemos no Brasil o nosso novo mundo.

Quando meu irmão morreu na guerra civil da Espanha, soube que ali já não era o meu lugar. Foi meu durante algum tempo, quando eu era bem pequena. A minha terra era, antes de tudo, a casa do meu pai Manuel. Lembro como se fosse hoje. Papai tinha 22 anos a mais que minha mãe, Esperança. Ela casou aos 14 anos com o viúvo e criou os filhos dele. Nos pueblos ao norte da Espanha, a comida era pouca e as dificuldades muitas. Tudo faltava, nada sobrava ao fim do dia. Veio a guerra sem fim, trazendo sal de lágrimas, ventos de solidão. A morte batia nas portas, arranhando a madeira com suas unhas pontudas. A nós, os pobrezinhos, só restava a oração. Reza não funciona quando soa a nossa hora. Chegou a hora do meu irmão mais velho, coitado. Morreu na luta feroz. Deixou três filhos pequenos para os meus pais criarem.

Tantas bocas famintas. Meu pai quis comprar uma vaca para filhos e netos beberem leite. O negócio estava adiantado. Ainda lembro do dia: eu tinha uns sete anos e era inverno. Estava na casa do meu avô quando ouvi o vendedor, meu tio, planejando vender uma vaca que não dava leite.

– E as crianças? Elas precisam de leite! Disse a mulher do tio.

O marido respondeu que não era problema dele. Acho que naquele dia nasceram este meu senso de justiça e a determinação que nunca me abandonam. Olhei a camada de neve lá fora. Grossa, pesada. Não me intimidou. Coloquei o xale nos ombros e pisei na estrada. Dez quilômetros até a casa do meu pai. A neve batia no joelho, mas cheguei inteira. Disse ao pai que o cunhado o estava enganando e a vaca não dava leite. O negócio foi desfeito.

Meu pai chorou muito quando decidi ir para o Brasil. Só se consolou quando um vizinho disse que, onde eu fosse, faria fortuna. Desde menina na família se dizia que eu era decidida, corajosa e trabalhadora. Não terei a falsa modéstia de negar. Sou assim mesmo e não há vergonha em reconhecer as boas coisas em nós.

Eu e o José só podíamos viajar casados. O José era de Castelo, um outro povoado. Nós nos conhecíamos desde crianças. Eu com 18 anos, ele com 19. O enxoval com monograma ficou pra trás. Não podíamos levar tanta coisa. A esperança que carregávamos era a bagagem maior.

Quando pus meus pés naquele navio, decidi que a Espanha seria passado. Minha terra de tensões acumuladas por um século, marcada por violência, deveria ficar para trás. A viagem foi terrível. Duas semanas a vomitar e a enfrentar os meus medos e agonias. Jurei nunca mais pisar num navio e também isso cumpri à risca.

No Brasil seria melhor, eu tinha certeza. O chão não estava encharcado de sangue nosso e de lembranças tristes. Eu sentia pulsar em mim a mais intensa coragem. Nos meus sonhos, o Brasil era um Eldorado, um lugar de fartura e riquezas, sem cenas de selvageria, sem represión, sem irmãos mortos numa guerra estúpida. Apenas o trabalho e a chance de construir algo sólido para mim e o meu José. Dentro de mim carregava uma certeza: eu venceria nesta terra, que trago no coração.

Descemos no porto tumultuado e encaramos São Paulo de frente. Arrumamos emprego. Eu, de doméstica; o José, no restaurante. Fazia tudo o meu José: descascava batatas e alho, esfregava o chão, atendia os clientes. A vida era de muita luta. Um acordar cedo, um dormir tarde, um economizar cada centavo. A cama de segunda mão rangia e quebrava. José consertava. Se eu lavasse nossa única roupa de cama e ela não secasse, dormíamos no colchão. Nunca reclamei. Nem ele. Bem ao contrário. Nossa vida era fazer o melhor com o pouco que tínhamos. Por isso dividi o quarto na metade, para ter uma sala na minha casa; por isso ele fazia bicos na feira. De lá trazia verduras, frutas e legumes para nós, além de mais algum dinheiro.

Meu José se tornou gerente no restaurante. Não demorou e ganhou uma parte na sociedade. Eu guardava todo o dinheiro para ampliar a nossa participação: queria ser dona do restaurante. Conseguimos. Durante anos era eu quem controlava nosso lucro e economia. Sempre fui boa com dinheiro. Investi em imóveis. Um, mais outro, um terceiro, muitos mais. Eu cuidava de tudo: pagamentos, aluguéis, impostos e inquilinos. Só me faltava uma coisa: uma conta no Banco do Brasil. Não pense que era fácil, não. Naquela época não bastava ter algum dinheiro. Era preciso ter nome e ser apresentado ao gerente por um cliente que desse boas referências. Eu não tinha o sobrenome de rico, mas sabia que ter uma conta naquele banco era importante. Não importava quantas vezes fosse rejeitada, eu tentaria.

Consegui quando a matriarca de uma família rica decidiu me apoiar. Enviou o filho para apresentar a mim e ao José na agência. Abrimos a conta no Banco do Brasil e eu bem lembro da sensação de triunfo que tive naquele dia.

Minha filha Ida nasceu depois de 20 anos de casados, pois eu só queria filhos quando tivéssemos boa condição financeira. Vinte anos usando preservativos. Disciplina férrea. Nunca nos arrependemos: minha filha estudou em boas escolas, não conheceu a pobreza.

Meu José sempre trabalhou demais. Quantas vezes acharam que eu era viúva porque ele quase nunca era visto.

Por vezes, na calma dos dias, quase posso vê-lo, ouvir-lhe a voz. Meu José era muito quieto e tímido. Diferente do meu temperamento forte, era pura doçura. Brincava com a nossa filha como se também ele fosse criança. Jamais gritou ou bateu na nossa menina. Uma mansidão que dava gosto ver. Não deixou de sentir saudades da terra dele. Eu nunca voltaria à Espanha. Ele sim. Até o fim continuou devoto de Santo Antônio, padroeiro do pueblo dele. Não deitava, levantava ou iniciava refeição sem uma prece. Bom como um santinho, estendia a mão a instituições de caridade, funcionários e pedintes, sem querer saber que destino o beneficiado daria ao dinheiro.

Tive pena do José. Nunca imaginou que eu cairia. Mas caí. Tive seis AVCs. Nenhum deles foi capaz de me derrubar totalmente. Derrubaram o José, pobre amado acostumado a me ver cuidar de tudo, dos investimentos à casa. Era eu quem fazia as contas e a que subia no telhado para checar se o pedreiro limpou a calha. Agora, estava paralisada, sem sustentar tronco e cabeça. Meu banho, numa cadeira, amarrada. Ao me ver daquele jeito, sem controle do corpo, a mente do José resolveu fugir. Não demorou muito e disseram que ele estava com Alzheimer. Queria que ele me visse hoje, recuperada. Teria gostado tanto.

Pro meu José, sempre fui porto seguro. Talvez me imaginasse perfeita. Ou invulnerável. Mesmo quando já não lembrava de rostos e nomes, se lhe perguntavam sobre sua mulher, respondia sem titubear: “Amo mais do que a minha própria vida”. Acho que o amor dá um jeito de sobreviver no silêncio da memória.

Quando morreu, fiquei ao lado dele até o último segundo, depois saí para cuidar de todos os detalhes. Escolhi um caixão bonito, digno de um homem muito amado. O túmulo de granito também era do jeito que ele gostaria. Sinto orgulho de tudo o que conseguimos juntos. É fruto de trabalho duro e honesto.

Sou muito grata ao Brasil, que acho o melhor país do mundo. Eu me sinto brasileira: no futebol torço até contra a Espanha se o Brasil estiver em campo. Estou mais para feijoada que para paella. É que tudo o que tenho, consegui nesta terra: do patrimônio à filha doutora. No Brasil conquistei respeito e um lugar ao sol.

Agora estou aqui, aos 90 anos, contabilizando seis AVCs, duas tromboses, um marcapasso e uma pandemia. Viva, lúcida, sem sequelas, sem me entregar. Não são doenças que vão me domar. Já disse: vim de um povo de fortes, que não se curva às dificuldades.

A vida é dada a me oferecer presentes. Eu os recebo com gosto. Anos atrás, um deles me pôs um sabor doce na boca. Dona de vários imóveis, eu quis comprar mais um. Já tinha decidido por outro, mas o corretor insistiu em me mostrar um prédio recém reformado. Meu coração disparou.

– Quanto custa?

O corretor disse o valor. Nem pisquei.

– Negócio fechado. Quero esse prédio. Esqueça o outro.

O homem me olhou espantado. Expliquei.

– Neste lugar funcionava a agência do Banco do Brasil onde abri minha primeira conta. Não queriam abrir conta para mim porque eu não tinha “nome”. Esse prédio agora é meu.

Ontem fui vacinada contra a Covid-19. Ainda tenho muito tempo por aqui.

Maria, José e Ida

Pintura principal: Mulheres da Galícia (Mujeres en la ventana). Bartolomé Esteban Perez Murillo. Pintada entre 1665 e 1675.

Para ler Seis Poemas Galegos, de Federico García Lorca, clique aqui. García Lorca, um dos maiores poetas da Espanha, foi assassinado durante a Guerra Civil Espanhola. Seu corpo jamais foi encontrado.