O relato de hoje é a história de Sofia. A pianista de 46 anos e cabelos escuros narra a superação após um relacionamento marcado por violência física, aborto forçado e abandono.
“Há poucas coisas mais chocantes que a mão do homem amado no seu rosto. Não numa carícia, mas num murro certeiro. O seu nariz parte, o sangue brota aos borbotões e mancha a blusa verde, presente da sua mãe. Foi assim que terminou o meu relacionamento com Carlos. Minutos antes eu havia dado uma bofetada nele. Foi o meu primeiro (e último) ato de rebeldia perante as situações degradantes que ele me fez passar. Mas este foi o penúltimo ato do drama. Vamos começar pelo princípio.
Sempre fui uma criança solitária. Apenas meu piano me foi companhia nos anos da minha infância. Meus pais eram boas pessoas, apenas não tinham tanto tempo assim para uma criança com alma de artista. Nunca reclamei disso. Encontrei o piano muito cedo e seguimos, a minha arte e eu, a nos completar.
Comigo caminhava um ingênuo sonho de amor. Eu sonhava em ser mãe. E o pai dos meus filhos seria um homem bom, igual ao meu próprio pai.
Eu tinha dezessete anos quando conheci Carlos. Tinha acabado de passar no vestibular de Música e saí da minha pequena cidade no interior de Minas para morar numa das maiores metrópoles brasileiras. Ele era cinco anos mais velho que eu. Homem da cidade, mulherengo e com um ego nas alturas. Eu era caipira, tímida e me achava feia.
Perdi a virgindade na escuridão de uma escada do meu prédio, sem que ele se preocupasse minimamente com o meu bem-estar. Sem prazer, tremendo de medo. Os meses seguintes foram um constante pavor de engravidar. Minha mãe era muito rigorosa quanto a questões sexuais. Mãe solteira era algo impensável na minha família. Sem dinheiro para ir a um médico, restavam os preservativos, que ele logo descartou com uma desculpa que até hoje me dá nojo e raiva: “Ah, camisinha é comer balinha sem tirar o papel”. Só o prazer dele importava. O meu jamais veio enquanto estivemos juntos.
Engravidei. Nunca senti tanto medo na vida como no dia em que contei aos meus pais. Tremia. Desabaram os meus velhos. Minha mãe, que se importava muito com a opinião alheia, ficou abatida pela vergonha. Ainda hoje lembro das lágrimas escorrendo pelo rosto do meu pai quando lhe contei que eu sentia muito pela “minha” inconsequência, mas iria assumir as “minhas” responsabilidades. Desde esse dia, nunca deixei de trabalhar.
Nove meses dando aulas particulares para crianças ricas, recomendadas pela irmã de Carlos. Um entra e sai de ônibus. Não larguei a faculdade de música. O futuro pai continuou a sua vida sem alterações. Aos sábados e domingos ia ao clube, tomava sol, jogava futebol. Chegava à minha casa às 19 horas de domingo, bronzeado, perfumado e bem-humorado. Encontrava-me cercada de livros, ao piano, ou fazendo sapatinhos de crochê, com profundas olheiras.
Jovem demais, profundamente deprimida e solitária, pensei em suicídio muitas vezes. Numa tarde, decidi que acabaria tudo naquela semana. Por um desses acasos da vida, um amigo da faculdade me deu de presente um livro. Era um livro espírita e contava a história de uma moça que, grávida, saltava de um precipício. Lembro de ter ficado muito impressionada com um trecho: o que dizia haver vida após a morte e a moça ter continuado a sofrer. O pior de tudo, ouvindo a voz do filho a chorar por ter sido morto por ela. Amor de mãe é algo inexplicável. Eu nem acredito nessas coisas, mas aquele trecho caiu sobre mim de forma avassaladora. Olhei para a minha barriga já grande. O bebê se mexia. Tive compaixão do meu filho indefeso, e o amei mais do que nunca. Iríamos enfrentar os dias juntos.
Comprei tudo para a minha criança: do berço de segunda mão às roupinhas. Meu pai pagou o parto num hospital particular. Temia que eu tivesse algum problema num hospital público. Durante a gravidez, o único presente de Carlos foi um sapatinho de tricô, amarelo, desses bem baratinhos.
Meu filho chegou numa manhã de primavera. E ainda hoje lembro de, ao vê-lo pela primeira vez, notar a luz nos seus olhos claros. Renasci, ali, naquela maternidade. Ainda hoje, os olhos dele são o meu sol particular.
Dois anos depois, eu continuava a trabalhar, estudar e criar o menino. Carlos prosseguia na sua rotina de idas ao clube, futebol, boates e viagens para a praia. Dormia até o meio-dia, após noitadas com outras mulheres. Nunca procurou emprego. A primeira vez que me bateu, foi na frente da minha mãe: uma bofetada certeira no meio da cara. Pediu desculpas de imediato e jurou que jamais faria de novo, garantiu que me amava e nunca qualquer agressão se repetiria. Repetiu-se, claro. Só eu acreditei nele.
Aceitei tudo durante quatro anos de relacionamento. Parecia anestesiada, não sei se pelo meu despreparo e juventude ou por cultivar uma esperança vã de ver mudança no meu parceiro. Meu piano se tornou invisível. Mudei de profissão, embora tenha concluído a faculdade de Música.
Na noite em que o meu copo derramou, contei aos berros, diante de toda a família dele, a minha rotina de abandono; falei do aborto forçado recém-feito, pago pelo irmão dele, e da devastação psicológica que me causou. Também disse da violência física, verbal e emocional; e do desrespeito que me esmagava. Culminou meu desabafo com a bofetada e sua consequência: o murro que me quebrou o nariz. O irmão dele me levou ao hospital, me culpando por ter “provocado” a ira de Carlos. Da família dele ninguém se solidarizou ou me disse uma palavra de conforto pelo que aconteceu. O relacionamento terminou ali.
Criei meu filho sozinha. Hoje ele é um médico bem-sucedido profissionalmente. Carlos continua a sua vida de adolescente emocional. É um pai distante. Nunca pagou pensão; os irmãos dele quitavam os boletos da escola do meu menino, quando podiam. E só. Há anos não temos qualquer contato. A última vez que falei com ele foi num telefonema amargo, do qual muito me arrependi. Contei a ele que o filho tinha passado no vestibular de Medicina e propus que déssemos um presentinho simples: um carro usado para ir à faculdade. Bem básico. Poderíamos dividir o valor em várias parcelas e pagar, cada um, 50%. Não sairia caro. A resposta dele resume bem o seu caráter: “Nem que ele quisesse um velocípede”. Desliguei o telefone, certa de que nunca mais na vida queria ouvir aquela voz desdenhosa.
Hoje percebo claramente como esse primeiro relacionamento corroeu a minha autoconfiança. Foi um fantasma a me seguir pelos anos seguintes. Cada relacionamento falido que tive trouxe a marca inegável do que aconteceu no meu começo de vida. Encontrei outros homens que também se mostraram indignos, pois a gente, num padrão autodestrutivo, parece buscar parceiros de perfil parecido com o que nos feriu primeiro. Demorei a me dar conta disso, mas consegui romper com o ciclo de repetição, com a ajuda de bons profissionais. Ainda assim, percebo que é necessário que eu me esforce para confiar nos outros seres humanos. Minha primeira reação perante desconhecidos ainda é a cautela.
O tempo e anos de terapia fortaleceram minha musculatura emocional. Ganhei autoconfiança e voltei ao meu piano. Ele agora é visível. Tornei-me uma profissional respeitada e, acredite, sorrio fácil. De tudo me restou uma força que ninguém abate, a música que me acompanha e um filho com olhos de sol”.
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Pintura: Saint Cecilia (Invisible piano), Max Ernst
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Abusadas é uma série jornalística semanal criada pela escritora Sonia Zaghetto e pelo psiquiatra Guilherme Spadini. Traz reportagens, entrevistas e depoimentos de pessoas vítimas de abusos físicos, financeiros, psicológicos e sexuais durante relacionamentos afetivos. Dos golpes na internet à violência doméstica, oferece um panorama dos desafios neste aspecto específico. A série é dividida em capítulos, sempre publicados às quintas-feiras.
Sonia do céu! Que horror!
Parece que estou vendo o meu irmão neste homem. Que coisa horrível.
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