O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem
(João Guimarães Rosa)
Nestes tempos de pandemia, redes sociais agitadas e guerra política que tudo contamina, uma antiga pergunta nos assombra com peso redobrado: como alcançar a tranquilidade da alma em um mundo marcado pela imprevisibilidade? Lidando com situações adversas e com pessoas capazes de nos causar fundas decepções, resta-nos a sensação de não ter domínio algum sobre a própria vida. O impacto emocional se manifesta em aflição, cansaço, desesperança, frustração e sensação de impotência. Mas há caminhos para aprender a lidar com o que está fora do nosso controle. O estoicismo – nascido há mais de dois mil anos na antiga Grécia – nos socorre com uma resposta: o caminho interno é antídoto para as dificuldades da existência. É uma rota que exige coragem, perseverança e uso da razão para se alcançar a virtude que conduz à tão desejada pacificação.
O estoicismo oferece um roteiro de liberdade que é capaz de nos pôr a salvo num barco seguro em meio ao mar agitado. É fincado em uma ética inabalável e em um invejável senso prático; serve a aristocratas e plebeus há vinte e três séculos. Iluminou a existência dos primeiros estoicos – o rico mercador Zenão e o escravo Epicteto, ambos gregos, seguidos pelo romano Sêneca e pelo imperador-filósofo Marco Aurélio – , e carrega princípios que coincidem com os de outras correntes filosóficas, com o Samkhya, o Budismo e o Bhagavad-Gita. Também é a chave para explicar a força moral de muitos homens que intuitivamente usaram estratégias estoicas para sobreviver a duros embates e a perdas avassaladoras. Como fez com os que vieram antes de nós, pode lançar luz também sobre as nossas horas sombrias ao nos convidar a nos tornar autores do nosso destino, capitães da nossa alma.
Entretanto, acautele-se: esse guia prático para nos mantermos no controle não é simples. Nem instantâneo. Requer um tributo: tornar-se inteiramente responsável por tudo o que se faz, pensa ou diz. Um longo aprendizado, às vezes de vida inteira, uma reeducação para bem viver. O prêmio está no fim da jornada de perseverança, de quedas e reerguimentos: assumir o comando, decidir sobre a própria libertação.
Uma questão central do estoicismo é o valor que se dá à racionalidade. É um contraponto às emoções destrutivas, resultado de equívocos na forma de enxergar o mundo e lidar com ele. Os estoicos se dispõem a autoexames racionais, nos quais aos poucos aprendem a reconhecer os condicionamentos que conduzem a repetidos erros e ao sofrimento.
As estratégias e exercícios estoicos são muitos. O imperador e general romano Marco Aurélio, por exemplo, fazia um diário. Era uma forma de examinar o seu dia. No auge de seu poder material, com um reinado marcado pelas guerras, Marco Aurélio buscou a filosofia e a virtude por intermédio do estoicismo. Em suas campanhas militares, guardava a noite para escrever as suas reflexões, as famosas Meditações (Τὰ εἰς ἑαυτόν). Eram treinamentos de autoaprimoramento. Uma das mais conhecidas é sobre a preparação mental para se relacionar com as outras pessoas, enfrentando os defeitos alheios com serenidade e autocontrole: “Começa o teu dia dizendo a ti mesmo: hoje eu encontrarei um homem intrometido, um ingrato, um arrogante, um enganador, um invejoso, um rude. Eles são assim porque ignoram o que é o bem e o mal. Mas eu – que compreendo a natureza do bem (desejável) e do mal (odioso); que sei, além disso, que estes homens desagradáveis são meus parentes, não por terem o mesmo sangue, mas por partilharem da mesma racionalidade e da mesma partícula divina –, eu não posso ser prejudicado por eles. Ninguém pode ter o poder de me fazer agir de forma reprovável; não posso odiar a eles, cuja natureza é tão parecida com a minha”. Força, bondade, compreensão e nobreza são próprio espírito do estoicismo.
Fundado no século 3 a.C. por Zenão de Cítio, um mercador cipriota, o estoicismo propõe deixar para trás o que não está sob o seu controle e focar no que se pode controlar. Zenão perdeu toda a sua fortuna em um naufrágio (situação que não estava sob seu controle). Em Atenas, ele conheceu outras correntes filosóficas e fez delas seu ponto de partida para a sua própria filosofia de lidar com as perdas materiais sem perder a serenidade. Zenão concluiu que o mundo interno, mental, era mais controlável do que o material.
O mundo não é como desejamos, mas sim como realmente é. Aceitar isso é passo importante para ter uma vida boa, pregam os estoicos. Não se trata de conformismo, de covardia ou passividade, mas de aplicar a razão a fim de identificar onde gastar energia. Apathea é a palavra grega que traduz a indiferença que os estoicos recomendam destinar às externalidades fora do nosso alcance.
Ser estoico, portanto, é ter uma clara visão do mundo e do lugar que se ocupa nele. É examinar as situações em que se está inserido, analisando se nos convêm os sentimentos que elas nos causam; se trarão algum tipo de desequilíbrio aos que nos cercam. O passo seguinte é extirpar o problema, mesmo que demande cortar na própria carne.
Para os primeiros estoicos, o universo é governado pela razão (logos), um princípio imaterial que tudo permeia. Portanto, o ideal é estar em harmonia consigo, com a humanidade, com a natureza e com o ambiente que nos cerca. Para alcançar tal harmonia recomenda-se a prática da virtude, sempre associada à razão. Ser virtuoso é uma escolha racional. Escolhe-se ter compaixão, cultivar altos valores, não aderir à barbárie, aos desejos violentos, às paixões dilacerantes. O homem virtuoso – adivinhe – é o que se controla, que é o seu próprio pêndulo moral, o que cultiva a sabedoria e se guia pela razão.
Um dos maiores estoicos romanos é o filósofo Sêneca, conselheiro do imperador Nero. Em um de seus mais famosos textos, as cartas a seu amigo Lucílio (Epistulae morales ad Lucilium), Seneca discorre sobre a necessidade de nos blindarmos contra o infortúnio. Para ele, alcança-se esse objetivo preparando-se para enfrentar as tempestades da vida. Vai além: preparar-se para o pior cenário. Não é uma visão pessimista. Ao contrário: é realista e precavida.
Para Seneca, a maioria dos homens atravessa a existência em estado de miséria, oscilando entre o medo da morte e as dificuldades da vida. Não sabem viver e não sabem morrer. A receita do filósofo: “Seja corajoso e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os homens mais poderosos”. Condenado por Nero a se suicidar cortando os próprios pulsos, Sêneca provou a todos a fidelidade às próprias convicções: enfrentou a morte com a coragem, a dignidade e a serenidade que pregava. Para ele, o homem deve tornar a vida agradável para si mesmo e para os demais, banindo todas as preocupações com ela. “Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja preparada para perdê-la”. Note aqui a sofisticação do pensamento. Ter algo bom é ser feliz por tê-lo, desfrutar o momento – um amor, uma fortuna, a saúde – mas não se escravizar ao medo de perder. A arte de saber perder, de deixar ir mesmo o que é muito desejado, é a ideia central aqui. Diante das boas coisas que a existência traz, vive-se plenamente e não se cede ao medo paralisante. Se algo bom nos chega, deve ser vivido em plenitude, e não razão de desespero pelo medo de um futuro que nem se sabe se vai se concretizar.
Por isso, um dos mais conhecidos exercícios estoicos é perguntar a si mesmo qual seria o pior cenário que se poderia vivenciar. E se planejar para ele, como alguém que se prepara para participar de uma batalha.
Tomar nas mãos a direção do próprio destino implica em uma visão muito particular sobre a existência. Esta não é boa ou má: é uma oportunidade. Importa é o que fazemos dela. Pessoas nascidas sob as mesmas circunstâncias podem ter trajetórias diferentes. Por outro lado, há uma série de situações inteiramente fora do controle humano, mas que perseguimos com furor, certos de que nos trarão felicidade. Saúde, riquezas, beleza, empregos, boa reputação e poder são vantagens que a vida nos oferece, mas não significa que sejam intrinsecamente boas. Depende do uso que delas fazemos. Podemos usá-las para enriquecer a existência própria e as dos outros homens; ou para promover o sofrimento pessoal ou coletivo. Sem mencionar que podemos perdê-las a qualquer momento.
Os estoicos também se debruçaram sobre as paixões, divididas em boas, más e neutras. O cuidado deve ser sempre com as emoções ruins. É preciso lidar com elas e analisar cuidadosamente o que elas ensinam sobre nós mesmos.
No texto Sobre a Ira, Sêneca ensina a reeducar a visão que se tem a respeito de algo negativo que aconteceu. Está no passado, não vai mudar. O único passo possível é educar a própria mente para lidar com o assunto.
Para os estoicos, o que perturba o ser humano não são as coisas em si, mas as opiniões que se têm sobre elas e o valor que se lhes atribui. Isto é, os condicionamentos, que podem ser verdadeiros ou falsos. Somos treinados para temer e para desejar; criamos imagens sobre as coisas. Epicteto cita a morte como exemplo: “Ela nada tem de terrível, senão teria parecido assim a Sócrates. Mas a opinião geral que se tem sobre a morte é o que a faz parecer temível aos nossos olhos”. A receita do velho escravo grego? Quando algo nos perturbar, não devemos atribuir a responsabilidade aos outros homens. “Acusar os outros pelos próprios infortúnios revela falta de educação; acusar a si mesmo mostra que a sua educação já começou; não acusar a si mesmo ou aos outros demonstra que a educação está completa”.
Há uma bem-humorada frase de Epicteto para exemplificar o estoicismo perante a inevitabilidade da morte. “Se devo morrer, morrerei quando chegar a minha hora. Como, ao que me parece, ainda não chegou a minha hora, vou comer porque estou faminto”. Interprete literalmente se desejar, mas o que Epicteto está ensinando é que não vale a pena sofrer por antecipação e torturar-se por algo que não se pode evitar. Melhor viver da forma mais tranquila, aproveitando o dia presente.
São, portanto, as nossas convicções que determinam a perturbação que sentimos diante de determinadas situações e pessoas. São os nossos juízos de valor, baseados em crenças, princípios e noções muito arraigados, que nos levam à angústia. E qual deve ser o caminho quando nos virmos completamente reféns da agonia? Em vez de varrer as emoções para debaixo de algum tapete, a solução é examiná-las com lupa e coragem, confrontar as crenças que conduziram a elas, desconstruir os condicionamentos e pôr o foco nas emoções que estão sob nosso controle. Não raro chegaremos à mesma conclusão que Sêneca: “Muitas vezes sofremos mais na imaginação que na realidade. Medos vazios se tornam medos reais”.
Por isso torna-se essencial identificar o que nos leva a ficar descompensados, ansiosos, aflitos, desesperados. No fundo, é um exame acurado de nossa trajetória e do que acumulamos ao longo da existência. Ao emergirmos dele, conheceremos a razão profunda que nos levou a um estado emocional desequilibrado. Com o tempo, damos razão aos estoicos: a única coisa sobre a qual temos controle é o conjunto de opiniões e valores que escolhemos. Todo o restante já não está ao nosso alcance. Isso inclui as atitudes alheias, as regras sociais, a opinião que outros têm a nosso respeito, e até o nosso próprio corpo. A vida que flui em nós é frágil. Apesar dos nossos esforços e prudência, não está ao nosso alcance evitar todas as doenças, impedir acidentes ou a morte. E muito menos comandar o pensamento e escolhas dos outros.
Em contrapartida, o homem que se examinou em profundidade também se torna mais livre e impermeável às colonizações mentais. O estoicismo produz indivíduos muito mais difíceis de serem seduzidos pelas línguas douradas dos prestidigitadores ou intimidados pelos poderosos.
Em resumo, o estoicismo nos convida a fazer o melhor dentro das nossas possibilidades. E diante do que está absolutamente fora do nosso controle, recomenda treinar-se para aceitar. Após a jornada interna, de autoconhecimento e autodomínio; depois de um longo período de esforço, perseverança e foco, surge a recompensa. É algo muito precioso desde a Grécia antiga: uma joia chamada ataraxia, a tranquilidade da alma. Esta é impagável. Vale a pena lutar por ela.
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“Se você vir um homem que não está aterrorizado em meio aos perigos, que é impermeável aos desejos, sereno na adversidade, pacífico em meio à tempestade, que olha para os homens de um plano superior e se vê em pé de igualdade com os deuses, não terá um sentimento de reverência por ele? Você não dirá que esta qualidade é muito grande e muito elevada em comparação ao corpo insignificante em que habita? Um poder divino desceu sobre tal homem.” (Seneca)
Para aproveitar a vida que brilha em nós neste dia, ouça a 1ere Gnossienne, do compositor Erik Satie. O pianista é o professor Alexandre Romariz.
Pintura: Morte de Sêneca. Gerard van Honthorst
Eu ia começar a minha meditação quando vi a chegada do seu texto.
Troquei a meditação pela leitura e ganhei muito com a troca.
Aliás, só me faltou a regularidade do exercício respiratório, tão próprio da meditação, porque diante de seu precioso texto, fiquei sem ar, tal a beleza das palavras e ensinamentos.
Ao fim, respirei agradecida por você existir e ser essa fada das letras, que tem o condão de nos trazer paz em tempos tão difíceis.
Obrigada.
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Um presente para o nosso domingo. Texto lindo e denso, para pensar mas também para colocar em prática atitudes tão importantes. Um aprendizado necessário.
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Fico também muito grata pelo maravilhoso vídeo do pianista professor Romariz.
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Simplesmente sensacional esse texto!! Parabéns pela clareza e amplitude abordadas!!
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