Nenhum artista escapa dos efeitos da luta política em seu país. Nenhum. A paleta se torna escura, os acordes sombrios, as palavras amargas. Kandinsky, Chagall, Brecht e Picasso – entre tantos outros – registraram a dor de ver seu país despedaçado.A mim também – como a qualquer outro artista – é doloroso ver o meu país convertido em arena de lutas fratricidas, cenário de uma guerra ideológica que não dá mostras de diminuir, embrulhado em teias de ódio recíproco. E me repito, como Cícero, pela milésima vez: o pior inimigo é o interno.
A luta política no Brasil tornou-se uma doença autoimune. Minou o organismo inteiro. Nenhum inimigo externo conseguiria planejar algo tão eficaz para atingir a maior potência da América do Sul e mantê-la paralisada no panorama mundial.
Vai passar, digo a mim mesma enquanto a tempestade ruge, a ignorância triunfa, a rudeza é louvada. Repito feito mantra. Pois, por enquanto, meu país me dói. Lava incandescente a se derramar no peito, minha terra é ferida aberta e me põe na boca um profundo amargor. A ponto de quase me impedir de escrever as histórias que desejo contar.
É difícil traduzir meus sentimentos acerca do Brasil. Minha pátria, pobrezinha, me lembra Guernica, a obra de Pablo Picasso. O gênio espanhol colocou sob a fria luz de uma lâmpada moderna os bárbaros efeitos do ódio que há milênios assombra a humanidade. Ao retratar os horrores da cidade bombardeada, Picasso pôs na tela o ato final do pedregoso caminho da guerra civil espanhola e as cenas da tenebrosa ditadura de Franco, que se aliou aos nazistas para cobrir de sangue compatriota o chão da Espanha.
Assim como Picasso, registro o desespero que marca os dias atuais da minha gente emocionalmente dilacerada, cabisbaixa e morta. Mais de 520 mil cadáveres, meu Deus, e seguimos nos odiando, nos combatendo, nos acusando. As instituições erodidas, a ciência desacreditada, a arrogância imperando e se manifestando sob a forma de uma agressividade que não encontra limites. Tudo no Brasil – até as mais comezinhas conversas – se contamina pelo viés da política sem ética, feita à base de cusparadas e ofensas.
Bolsonaro, ao seu modo, repete os gestos do generalíssimo Franco e mata o próprio povo. Sem piedade, desdenha de vacinas, de máscaras, promove aglomerações. Combate a ciência, manipula, espalha inverdades. Sem qualquer dignidade ou compaixão pela dor que atinge diariamente milhares de brasileiros, espalha a desinformação e seduz os espíritos que a ele se assemelham no gosto pela baixeza.
Seus risos debochados, seu pensamento mesquinho e seu destempero ferem mais que sua absoluta inépcia para governar o País. E, assim como Franco, imagina-se protegido pela divindade. Só lhe falta sair às ruas em um palanquim. Não é o primeiro governante a agir assim; espero que seja o último.
Penso que já passa da hora de optarmos pela civilidade – é nossa única rota de fuga. Já há alguns anos o Brasil se converteu em um país onde impera o “nós-contra-eles” (em que todos os contendores se acreditam detentores de toda virtude) e celeiro de tragédias diárias. Escândalos – políticos, econômicos, ambientais – se somam à violência endêmica e à corrupção que parece se entranhar como larva em cada célula do organismo social.
No entanto, os últimos meses registram um cenário cada vez mais deteriorado. Há um culto à brutalidade. Algo sombrio e perigoso, que deveríamos combater incansavelmente.
Sim, há muitos brasileiros agoniados com este estado de coisas. Alguns buscam escapar do país, enquanto outros encolhem-se, calados. Não por covardia, mas por cansaço. Opinar, atualmente, é pedir para ser crucificado, banido, exposto. Perde-se amigos e familiares, ouve-se impropérios, ironias, ataques ferinos. Enfrenta-se o inferno. Uma Guernica sul-americana a expor perversidades e gestos ignóbeis.
Já não há assunto que escape à sanha colonizadora de almas, sedenta por curvar a cabeça alheia. Os autoproclamados “donos da razão” são pouco devotos da Razão (limpa, fresca, corajosa e disposta a ouvir argumentação).
Em meio a doença, morte, dor e desvarios políticos, escolho eu a delicadeza, o estudo, a urbanidade e a calma. As histórias me imploram para nascer; desejam habitar a folha de papel. Esbarram na minha mente vestida de angústias, recuam e se põem a aguardar. Encho-me de coragem. Repito-me que, para além deste cenário de misérias, há um outro mundo. Feito de serenidade, esperança e coragem. O mundo interno, onde habita a graça de poder criar universos fora do alcance das unhas pontudas que se cravaram na carne brasileira.
É um parto a fórceps. Faço-o todos os dias.
excelente pauta e texto, como sempre’
parabéns
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Excelente reflexão. Pena que não sensibilize os ouvidos e mentes dos intolerantes. Espero que essa onda de ódio e irracionalidade passe logo, e que a nossa essência sobreviva a isso tudo.
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