Para Pedro

“Há tempos venho tentando achar um momento para dizer isso: você já me salvou de todas as maneiras que alguém pode ser salvo”. A tua mensagem brilha na tela do meu celular e ali, permanece, pulsando na exata batida do meu coração. Eu a contemplo com a respiração suspensa. Os fios invisíveis que unem humanos estão todos esticados.

Sinto temor e gratidão, alívio e esperança.  E tenho vontade de te falar de uma antiga deusa egípcia, Seshat. O nome dela significa “a que escreve”, mas também atende por “Senhora da Casa dos Livros”, guardiã da Casa da Vida e amiga dos mortos. Não é curioso que os egípcios acreditassem que a deusa da escrita e da sabedoria esticava a corda no ritual para ajudar nos cálculos da construção de um novo templo? Não é fascinante que a deusa das letras também seja a dos construtores, pois transborda conhecimentos de astronomia e matemática? Percebes a suprema beleza do verbo a proteger o fio da existência e a fazer ouvir a voz dos mortos pelos milênios afora, guardando-lhes a memória?

Tudo faz sentido. Literatura é elaborada construção – letras, números e berçários de estrelas; livros podem ser templos. A corda de Seshat também une escritores e leitores, um fio divino, trançado de fibras várias, impregnadas de força e sentimentos. Seshat e a literatura constroem mundos inteiros, gentes novas, jeitos de dizer coisas e histórias que pertencem ao oceano dos milênios. Aceleram as areias das ampulhetas e param os ponteiros dos relógios.

Seshat foi retratada vestida com pele de leopardo. Já pensaste na razão? Na minha mitologia particular, é a silenciosa simbologia da pele emprestada que veste os que escrevem; pele que remete a algo muito preciso, elegante e poderoso. Nas mãos e na cabeça, lápis e papiros, o livro futuro a pairar sobre a mente em febre.

Os livros – devo te contar – têm vida própria. Eles se intrometem na mente dos escritores, tomam posse de nós. Juramos que os controlamos, mas é o contrário. E, apesar do nosso caos pessoal, eles se organizam sozinhos, alimentando-se do líquido em nossas veias. De repente brotam, filhos recém-nascidos e já muito velhos. São nossos e são do mundo. O que vêm dizer aos homens talvez se resuma a uma pergunta: valerá a pena passar alguns anos na Terra se não for para fazer da vida um cântico ao amor e à imaginação? Tanto desamor há por aí, tanta aridez e arrogância a devorar os dias tão breves. Juntam-se a notícias, desejos, expectativas, ruídos do mundo. Por falar nisso, não achas que há ruído demais neste mundo? Sem mencionar os gritos dentro das nossas cabeças, ecoando a loucura alheia, perturbando o frágil equilíbrio que nos é caro.

Eu sinto saudade de tanta coisa, devo te confessar. Saudade de coisas simples e pequenas que fazem sorrir com a boca, os olhos e o corpo inteiro. Quando elas me faltam na vida concreta, escrevo. E todas as maravilhas acontecem no terreno do espírito, ao ritmo das palavras que se juntam.

Sempre escrevi para mim. Mas agora escrevo também para ti e para muitos outros. As palavras ganham asas (isso é tão grego!) e pousam aqui e ali, carregando os sentimentos. Eu as ofereço e as recebo, testemunhando todos os dias as maravilhas que fazem. Mas as vigio de perto, pois o lápis da deusa tem ponta de diamante – intenso brilho capaz de cortar paredes de vidro e rasgar a carne. Como toda deusa, Seshat é paradoxal – exigente e generosa.

Tudo isso escrevo para te dizer que a tua mensagem na tela do meu celular fez comigo a mesma mágica. Parecia a voz da minha mãe a dizer: eu te trouxe um bolo que acabou de sair do forno. Come, está quentinho ainda.

E agora só peço a Seshat que a minha escrita te abrace quando tudo desabar em torno de ti.

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Abaixo você ouve a pianista Sima Halpern interpretando Canta, canta mais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e lê trechos de diversos escritores sobre a arte de escrever.

  • Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida – umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso. (Fernando Pessoa)
  • “O autor escreve apenas metade de um livro. A outra metade fica por conta do leitor.” (Joseph Conrad)
  • “Corrigir uma página é fácil, mas escrevê-la – ah, amigo! – isso é difícil.” (Jorge Luís Borges)
  • “Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.” (Clarice Lispector)
  • “Uns escrevem para salvar a humanidade ou incitar lutas de classes, outros para se perpetuar no manuais de literatura ou conquistar posições e honrarias. Os melhores são os que escrevem pelo prazer de escrever.” (Lêdo Ivo)
  • “Escrever é sacudir o sentido do mundo.” (Roland Barthes)  

Imagem: Detalhe de escultura da deusa Selket.