Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.

(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)

Folha de bordo, vermelha, perdida na grama do imenso parque. Eu a recolho com a ponta dos dedos. Parece uma estrela antiga, a anunciar a chegada do outono. Estou sozinha diante do lago e é como se notas perdidas de um canção distante se erguessem dentro de mim. Um sentimento de gratidão pela jornada me invade devagar. Eu o sinto no tronco das árvores e nas montanhas da Califórnia.

Tudo à minha volta é exuberante e colorido. À luz dourada do entardecer, os juncos se curvam ao vento e os grandes patos se preparam para o voo migratório em direção ao sul.  O perfeito ciclo se repete há milênios e agora está diante dos meus olhos. Um dia será registrado por outras retinas deslumbradas ou fatigadas.

Estou no sagrado território da natureza. Uma catedral de galhos e folhas, iluminada pelos últimos raios do sol, repleta de orações dos pássaros. Das árvores caem, rodopiando, folhas caducas. Meu coração se enche de harmonia.

Sempre me comovo com a oportunidade magnífica de ter estado aqui no planeta azul. Que aventura tem sido. Não lembro da chegada, mas espero estar consciente no dia da partida.

Pisco devagar e inicio comigo um jogo novo, o de misturar a paisagem à arte que insiste em morar num edifício igualmente sagrado e secreto, muito além de aplausos e vaidades mesquinhas.

Enxergo vitrais no sol a nascer no Himalaia, nas florestas de bambu da China, na Amazônia extraordinária a estender um cobertor de árvores sobre o leito das águas. Tenho como escritura divina os ipês a desatarem cores novas no cerrado, os pinheiros vergados sob o peso da neve, as sequoias gigantes e seus troncos incendiados, as cerejeiras floridas compondo tapetes de pétalas. Falta-me o deserto e seus silêncios.

Agora mesmo, na silhueta das montanhas posso ouvir Vivaldi: Nisi Dominus. Um murmúrio de amor, grave e dulcíssimo, a agitar as folhas perfumadas atrás de mim. Vozes angélicas carregadas pela brisa.

Um barquinho ancorado, quadro vivo de Monet, embala o sono dos pardaizinhos. Há amarelos de van Gogh numa graciosa ilha, verdes de Pissarro e azuis de Sisley nas águas. Uma garça branca passeia entre bandeirolas coloridas de Volpi e posso jurar que as plumas de junco nas margens do lago são bailarinas de Degas ou as amigas de Lautrec nas igrejas. Santificadas, saciadas, felizes.

O sol se põe atrás das montanhas. Talvez eu devesse estar de joelhos, já que transbordo de humildade e gratidão. Tudo está perdoado, lavado e redimido. As nuances, sons e sabores da Terra constroem um caleidoscópio que preenche a memória e – sei bem – não poderei carregar comigo. Não há problema, deixo-os para quem vier depois. No momento há tanto amor em mim que me basta deixar o lugar em ordem e não perturbar os companheiros de jornada.

Minha alegria me mistura a todas as coisas e seres – estrelas, humanos, micróbios e caramujos obscuros. Juntos, somos a missa do casamento de Mozart. A noite me abraça com a quietude após Et Incarnatus Est, seguido do Sanctus vigoroso. Cada átomo do mundo preenchido com notas que provam existir milagres humanos misturados aos mistérios insondáveis.

Curvo-me à solenidade da hora, ao poder do verbo.

Ergo-me, purificada, absolvida, inteira. E meu corpo se converte em prece de carne, ossos, pele e sangue.

(Amen).

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Abaixo, você vê fotos que fiz no Vasona Lake County Park, em Los Gatos, California. Abaixo da galeria, o vídeo em que o contratenor alemão Andreas Scholl interpreta Nisi Dominus”, de Antonio Vivaldi.