No dia em que a morte bateu à minha porta, eu a recebi com um sorriso sincero. Ela entrou, de vestido amarelo, e espiou ao redor, muito calma. Viu as flores frescas que comprei para esperá-la, e alisou o penteado novo. Gostou? Sacudi a cabeça, emendando que estava linda. Parecia mais jovem (e isso não era verdade – ambas sabíamos muito bem). Recusou o café: “Faz mal para o meu refluxo”, disse, polida e risonha.
Perguntei se era chegada a minha hora. Disse que não. Pontualmente, às cinco da tarde, coloquei o chá no bule. Na varanda limpa, os gatos piscavam, distraídos, e o vento frio do outono fazia as últimas flores cor de rosa se despetalarem sobre o pratinho das madeleines. Ela pegou um dos bolinhos e lhe estendi a xícara de chá preto. “Proust!”, falamos juntas. E rimos. Folheou, distraída, o livro de poemas de Louise Gluck e ensaiou uma conversa filosófica.
“Estava me esperando?”
“Sempre, madame. De malas prontas, inclusive”.
“Talvez eu demore”.
“Não importa”.
Tive de dizer-lhe que há algo absolutamente fascinante na ampulheta em que escorrem as minhas horas. Ela em nada me assusta. Na verdade, sua imagem é o que me motiva a buscar as gotas de alegria ocultas no subsolo do cotidiano.
Não faz muito tempo que adquiri um novo hábito – contei-lhe. Ao acordar, penso obrigatoriamente em como agiria se fosse o meu último dia. E isso muda a perspectiva. É por pensar no que pode se acabar de repente que me ponho a rir de tolices que, em outras circunstâncias, me tornariam azeda. Abraço as desfeitas, perdoo ofensas, tento compreender os outros. Estou a léguas da iluminação e da santidade, pobre de mim. Mais perto estou de cuidar desse território ainda inculto que é o meu coração e seus sentimentos desencontrados, um tanto adolescentes por vezes.
Pergunto-me o tempo inteiro por que, raios, deveria dar atenção aos surtos de mesquinharia, às fofocas que insistem em me invadir os ouvidos, à irracionalidade alheia? Já me bastam meus próprios inimigos, os internos, a quem devo combate sem trégua.
Recuso-me a deitar carregando o peso das línguas ferinas, da irresponsabilidade alheia, dos surtos de desamor, invejas e vilanias. Minha cama não suporta o peso de gente desaforada nem trago à minha refeição a companhia de quem me fez mal. Deixo-os do lado de fora da porta, do leito, da mesa de jantar. Que se roam longe de mim. Eu quero leveza, alegria e beijos.
Também não dou atenção aos que me exigem postura e escrita de acordo com suas convicções. Escrever profissionalmente exige muito. Há um silêncio enorme, um deserto na mente. Então surge um ruído, todo interno, de paredes sendo erguidas e o som de vozes indistintas. E tudo começa a se organizar. Como posso me permitir distrair com o barulho das demandas de fora, se elas interferem no mundo que estou construindo?
Ela se serviu de mais chá. Uns passarinhos pretos faziam uma algazarra na árvore e deixavam agitados os gatos. Ela me olhava com a mesma expressão de minha mãe e perguntou pela minha saúde (como se não soubesse).
Disse-lhe que ando em paz com as impossibilidades. Ontem, desejei comer croissants, mas não pude. Queria nadar e tomar sol em Santa Cruz – também não me é recomendável. Tentei assistir a Sonho de uma noite de verão numa transmissão direta do The Globe, em Londres. Esperei por isso durante três meses e acabei com a sensação de que desperdicei cinco libras. A montagem era ruim e desisti no meio. Nunca imaginei que abandonaria uma peça do senhor Shakespeare pela metade, mas quando a atriz começou a fazer piadinhas infantis em francês (Voulez-vous coucher avec moi, ce soir?) e passou a imitar Edith Piaf, achei que era a minha deixa para escapar em direção ao país das maravilhas. Uma das vantagens de se pensar frequentemente na morte é ter aguda consciência de que o tempo é precioso demais para ser desperdiçado. O jeito foi fazer sopa de aipo e assistir a um filme que o Cláudio recomendou, Marjorie Prime. Muito bons, diga-se de passagem – o filme e a sopa.
Minha visitante é bem discreta, mas creio que aprovou minha decisão de a ninguém culpar pelos meus problemas. Carrego com tranquilidade o peso das minhas escolhas. E tenho paciência extra comigo. Sem excessos de autoindulgência, mas com bastante autoamor, porque do lado de fora empatia é artigo raro. “Melhor contar consigo mesma”, ela acrescentou.
Depois li para ela uns trechos da Odisseia. Por puro prazer e não porque vou dar um curso. Confesso que rimos na parte em que Zeus reclama da humanidade: “É espantoso como os mortais estão sempre prontos a culpar os deuses. Eles dizem que é de nós que vêm os males, mas eles próprios se infligem sofrimentos além do que está no seu destino”.
Fechei o livro e anunciei minha vontade de trombetear na varanda: “Vocês conhecem a palavra do Senhor Zeus?”
Ela sorriu levemente, despediu-se com um gesto que considerei gracioso e fechou a porta em silêncio.
Deixou um cheiro de magnólia. Quando voltar, daqui a não sei quanto tempo, talvez eu a reconheça pelo perfume.
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Cara Sonia, sempre sintonizamos nos assuntos e dilemas da alma. Claro, você não me conhece e escrevo pouco por aí para você poder saber, mas ocorre com frequência. Aprecio sua escrita, ela me comove muito, já disse isso outras vezes.
Obrigada por sua maneira profunda de falar sobre coisas escondidas no coração.
Um abraço afetuoso da Elìsa.
Namastê.
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Querida Elisa, muito obrigada pelo carinho. Um abraço carinhoso.
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Não sei como, esse texto, A Visita, desabou na minha tela.
Só a frase “buscar as gotas de alegria ocultas no subsolo do cotidiano” coloca a autora no primeiro time dessa gente que insiste em pensar e gosta de pensar.
Já vale essas andanças aleatórias pela rede (falha minha, não conheço a Sonia, embora tenhamos amigos em comum).
Uma frase muito bem acompanhada pelo talento e pelo conteúdo das demais frases em que ela coloca uma filosofia de vida.
É uma coisa para tentar: acordar e fazer de conta que é o último dia da vida. Claro que não vou conseguir.
Pode ser que eu esteja, com a idade, ficando apenas mais babaca do que já era.
Pode ser. Apesar disso, o texto continua sendo um dos melhores que já li.
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Muito obrigada, José Carlos. Muito gentil.
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Soninha, esse seu texto é excepcionalmente bom! Li com muito gosto. E está dando a volta ao mundo, curiosamente chegou a mim por outros meios também…altamente recomendado por gente muito lida e muito sensível…fiquei orgulhosa por você!
Como sempre talentosa, serena, ponderada, sensível e excelente artesã das palavras!
Um abraço apertado e saudoso
Thanya
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Thanya querida, muito obrigada. Estava pensando em você no exato instante em que abri a caixa de comentários. Um grande beijo, minha amiga.
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