Para Íris e Lizzie Bravo

Às vezes o amor simplesmente acontece. Manso, ele te encontra numa rua sem asfalto, em tarde de sol. De repente, tudo brilha e refulge ao teu redor. Ele te faz rir, desarmado. Um instante depois te atira numa espiral que converte a vida em turbilhão. Um frenesi de gozo e lágrimas regado a sangue escaldando e que te faz escutar algo feroz rugindo no teu peito a ponto de espalhar dor e sal, mel e água de rosas no teu espírito atemorizado. Não tão simples e nada manso, afinal. Amor, dizem. De quem falo neste texto? De mim, de ti, dos Beatles ou de Get Back, o documentário de Peter Jackson? De todos nós, por certo, já que “Get Back” me fez escrever sobre os Beatles com um olho fixo nas impurezas e no esplendor que movem a nossa humanidade. Um filme que contém todo o deleite, a tensão, as ásperas lutas e a graça da existência.

Na tela não há heróis ou vilões. Apenas os dramas de todo mundo elevados a status superlativo porque são os Beatles – e só houve quatro deles na história do planeta. Ali estão – na pele de John, Paul, George e Ringo – nossas histórias cotidianas, nossos corações despedaçados, risos infantis, aspirações, ciúmes, traumas, solidão e vaidades.

Diante dessas emoções finamente servidas por Peter Jackson, a estilista Stella McCartney chorou. Deu-se conta de que durante boa parte da sua infância e dos irmãos, seu pai enfrentava os efeitos devastadores da separação – um período que Paul não hesita em apontar como o pior da sua existência. Por isso, Julian Lennon disse que assistir ao documentário o fez amar novamente o pai. Stella, Julian Lennon e Sean Ono Lennon assistiram juntos à première, publicaram fotos no Instagram chamando uns aos outros de família e marcaram os filhos de George Harrison e Ringo Starr. A nova geração quer cura e libertação das dores passadas.

Get Back é um filme sobre arte e artistas. Fala, sem medo, da dor dilacerante que é criar, misturando sentimentos, talento, expectativas próprias e alheias, mercado, traumas, dinheiro e frustrações. É arte, mas é também emprego, sonho, pão de cada dia, sobrevivência como indivíduo.

A química Lennon-McCartney transpõe a tela. Os dois se entendem no olho, respondem rápido ao desejo do outro, riem e escrevem canções como se o resto do mundo pouco importasse. E, ao mesmo tempo, provocam-se mutuamente e disputam espaço. Parcerias artísticas deveriam ser território intocado: punição severa aguardaria aquele que se interpusesse entre dois artistas que criam juntos. Maridos, esposas, filhos e os próprios parceiros na arte, acautelai-vos: há gavetas separadas para cada seção. Na da parceria artística vivem segredos que estão além do compreensível e explicável em linguagem-de-gente. O preço a se pagar é o mesmo de um casamento que se desfaz sob ódio: veias abertas.

Lennon e McCartney ultrapassaram limites ao isolar George Harrison, também ele parceiro. A edição do filme destaca o sofrimento de George no estúdio. Rosto e corpo não escondem a frustração de alguém que continuava a ser tratado como o irmão mais novo, artisticamente desdenhado e a quem se permitia apenas voos de galinha. O episódio 1 termina com George abandonando os amigos ao som de uma das suas mais emblemáticas canções: “Isn’t it a pity?” (Não é uma pena e uma vergonha como partimos os corações uns dos outros?). Nesse instante vêm à mente todas as situações em que a arte incorporou na sua mala de sonhos as disputas menores e as armadilhas da egolatria. E assim esmagou preciosidades.

Haverá quem se pergunte por que George – o Beatle quieto, o que meditava e mergulhou na cultura indiana – foi justamente o que cedeu à irritabilidade. Qualquer praticante sério de meditação lhe dará a resposta sincera: porque faz parte do processo estar exposto a si mesmo, aos seus desejos insatisfeitos, à incompreensão dos amigos, às zombarias e à indiferença. Nem sempre se consegue ser yogue em meio ao caos, embora se tente desesperadamente. É uma experiência transformadora, que põe um espelho diante do rosto e determina, entre a provocação e a frieza: enxergue-se agora. E aprenda. George não foi exceção.

Quando ele deixa o estúdio, os demais reagem de forma passional. Jackson mostra tudo numa sequência crua e inquietante. Os três Beatles restantes atacam os instrumentos num frenesi. Não há música, mas descarrego de raiva e ressentimentos acumulados. Yoko vai até o microfone e grita algo selvagem. Todos parecem em busca de redenção e catarse.

A personalidade galhofeira de John, sua inteligência cativante e non-sense estão sempre a postos durante a filmagem. John dança, canta, faz piadas e ri (demais) no estúdio. Ele tem 28 anos, está apaixonado por Yoko, as veias tomadas por heroína, adora provocar o mundo e anda farto de ser criticado. Está claramente testando os limites dos companheiros ao impor Yoko no estúdio. Uma diversão perigosa, na qual de vez em quando desponta, sob o comportamento esfuziante, uma crueldade e uma indiferença que contrastam com os abraços que distribui.

Há outras mágoas. Ringo se refugia no habitual silêncio de esfinge. É uma estratégia. No episódio 2, um Paul McCartney desamparado e com os olhos cheios de lágrimas se dá conta de que seu sonho se acabava. Sua banda, sua vida, seu trabalho e sua paixão se desfaziam diante dele. Os outros estavam cansados, tinham planos e sonhos diferentes. Ele, não. Era (e ainda hoje é) um Beatle. Lutou o quanto pôde para impor alguma disciplina ao caos criativo da banda, seu perfeccionismo o fez pesar a mão e ferir George, e foi o único a discordar dos amigos, alertando-os de que iam entregar a carreira nas mãos de um predador, que manipulava artistas talentosos. Perdeu tudo. O período após a separação o atirou num inferno de infelicidade, bebida e agonia. Até hoje se mantém musicalmente ativo, embora próximo aos 80 anos. Muitos amaram os Beatles; só um deles amou a banda tanto quanto o mais apaixonado fã.

Para Paul McCartney o amor aconteceu e cobrou tributo: abriu-lhe a boca e nela derramou a previsível espiral de risos altos e gritos de dor. Como acontece comigo, contigo e com todos os que se atrevem nesse jogo arriscado e viciante chamado vida.

Sobre o documentário Get Back, de Peter Jackson

O documentário “Get Back”, dirigido por Peter Jackson, reedita os acontecimentos de janeiro de 1969, quando os Beatles se reuniram no Twickenham Film Studios, em  Londres, para ensaiar as canções do seu próximo álbum. A ideia era filmar as sessões, fazer um show e lançar o resultado em um documentário. Mas quando este, intitulado “Let It Be” (assim como o álbum), foi lançado em 1970, a banda havia sido extinta. O filme acabou por ser um retrato sombrio, povoado de  ressentimentos e amargor. Jackson examinou as mais de sessenta horas de filmagem e as fitas de áudio gravadas há mais de meio século, e emergiu com uma nova história, mais equilibrada e luminosa.

Diretor experiente, Peter Jackson construiu um roteiro que se desenvolve ao longo de três episódios. Em resumo: Os Beatles – celebridades planetárias – estão há anos sem fazer um show e decidem se reunir num estúdio para gravar um álbum. Tensões e alegrias se alternam entre os personagens, amigos desde a adolescência, agora no auge da fama. Há ótimas viradas de roteiro e emoções à flor da pele enquanto eles compõem músicas que seduziriam milhões de pessoas do mundo inteiro. O show ocorre num dia gelado, num telhado em Londres, e é encerrado pela polícia. Ninguém sabia na ocasião, mas era a última vez que a mais icônica banda do planeta se apresentaria em público. Fim.

De bônus, o diretor – ele mesmo um fã apaixonado pelos Beatles – oferece ao público o sonho de qualquer admirador da banda: um olhar privilegiado sobre o processo criativo de quatro músicos talentosos que ergueram novas bases para a cultura pop. Nos três episódios é possível acompanhar o artesanato de um álbum dos Beatles e se vê o nascimento de canções que se tornariam hinos de gerações – como se o telespectador estivesse dentro do estúdio com os músicos.

Curiosamente, o que Jackson mostra é um processo caótico mas que não deixa dúvidas sobre os talentos individuais dos músicos. Chega a ser espantoso acompanhar o nascimento tumultuado de algumas das mais famosas canções de todos os tempos.

Quando o documentário começa, os Beatles estão há dois anos sem Brian Epstein, o empresário que os alçou ao estrelato e morreu aos 32 anos. Eles mesmos reconhecem: faltava a figura paterna, o organizador. É palpável a ausência de disciplina e condução do grupo de jovens músicos, riquíssimos em vários sentidos. Cedo demais o mundo se curvou a eles. Agora, Epstein está morto e há uma vazio incômodo a se interpor entre os amigos. Quem assume a casa quando o pai morre? Nenhum dos irmãos geniais consegue – os outros não aceitariam. McCartney tentou e foi muito mal recebido.

Simultaneamente, havia outros fatores: tinham menos de trinta anos, eram milionários e estavam no auge da criatividade. Queriam tudo experimentar. A arte exige não se acomodar ou repetir. Zona de conforto não é para os grandes. Deuses encharcados de heroína, LSD, marijuana, cigarros e álcool, eles debutavam na vida pessoal com novos relacionamentos, muito mais intensos e invasivos. Pela primeira vez, a até então inabalável sacralidade dos Beatles sozinhos no estúdio foi desfeita. John trouxe Yoko à sede da Apple e ela nunca mais foi embora. Sentada no amplificador, ela testou todos os limites de George Harrison e Paul McCartney. Ringo, como sempre, permaneceu calado. Desenvolveu a arte da sobrevivência quieta.

 “Let it Be”, o documentário original, sublinha os momentos de conflito, mas o filme de Jackson destaca outros momentos das filmagens que haviam sido soterrados em edições anteriores do material. Um deles é o clima de camaradagem que ainda havia entre os Beatles, as fartas horas de risadas e brincadeiras, e a instantânea cumplicidade que se estabelecia quando tocavam antigas canções, próprias ou de outros músicos. Assim, “Get Back” se contrapõe a “Let It Be”, usando a mesma gravação. Juntos, os dois constituem uma aula sobre edição de imagens e seleção das cenas para induzir as emoções do público.

Apesar de equilibrar a visão que se tem daquele momento dos Beatles, “Get Back” deixa claro que o fim estava próximo. Durante todo o documentário, a banda está criativamente pujante. À medida que o filme prossegue – entretanto – as disputas avançam e os desgastes ganham força. Quem assiste começa a se dar conta que as fraturas são graves demais: era inevitável  o fim dos Beatles. A intempestiva saída de George Harrison é o mais tenso desses momentos. McCartney exagerou nas críticas e exigências, avançando demais sobre a criatividade de George. Este já não escondia a frustração.

Peter Jackson explora, com muita habilidade, o desgaste causado pela onipresença de Yoko Ono. Ela está constantemente sentada ao lado de John Lennon, desenhando, bordando, fazendo caligrafia japonesa, dando palpites. Sobre todos eles paira a frase sem rodeios que Lennon disse a McCartney: “Eu sacrificaria todos vocês por ela”.

Em outro momento, Jackson expõe os primeiros momentos de um dos pivôs da separação da banda:  a discussão acerca de quem assumiria o controle da empresa que detinha os direitos sobre as composições. No filme, John Lennon anuncia que vai a uma reunião com Allen Klein e na volta se mostra entusiasmado com ele. O empresário americano oferecera seus serviços aos Beatles. Pouco depois dos eventos mostrados em “Get Back”, John convenceu Ringo e George a assinarem com Klein. McCartney discordou, alertou que o empresário não era confiável e propôs que seu sogro e cunhado assumissem a direção da empresa. Foi voto vencido. O tempo mostrou que tinha razão: Klein foi processado por praticamente todos os seus contratados e ludibriou seus mais famosos clientes: os Rolling Stones. Ficou com os direitos de algumas das mais conhecidas canções de Mick Jagger e Keith Richards – dentre elas Satisfaction e Simpathy for the Devil.

A perspectiva da dissolução da banda permeia todo o filme. Logo no início, McCartney apresenta uma ideia de um especial de TV. Nele, os Beatles fariam um show intercalado com notícias ruins. A chamada final seria o anúncio de que a banda acabou.

Da pequena Liverpool para o status de uma das mais influentes bandas do planeta, a trajetória dos Beatles foi meteórica. Em 6 de julho de 1957, Paul McCartney, com quinze anos, foi de bicicleta até uma feira para ouvir um grupo local chamado Quarry Men, de um certo  John Lennon. Gostou do que ouviu e pediu para tocar na guitarra uma versão de “Twenty Flight Rock” de Eddie Cochran. Começou assim: dois órfãos de mãe, talentosos e cheios de vigor, fundam uma banda numa cidadezinha portuária da Inglaterra. Pouco tempo depois, McCartney trouxe um amigo de escola, George Harrison, um talentoso guitarrista, tratado como irmão mais novo.

Estudavam noite e dia, esforçavam-se para aprender cada vez mais sobre os instrumentos e faziam covers de excelente qualidade tanto no Cavern Club, de Liverpool, como em outras cidades. Cansados de cantar músicas alheias, investiram em composições próprias. Naquele momento, Paul e John firmaram o pacto: os compositores da banda seriam apenas Lennon e McCartney. O documentário “Get Back” mostra o quanto a ideia estava entranhada na mente de ambos.

Em 1960, os Quarry Men se renomearam como The Beatles. No ano seguinte, conheceram Brian Epstein, dono de uma loja de discos e crítico musical, que se tornou empresário da banda, passou a gerenciar profissionalmente os contratos e os pôs sob a orientação do produtor George Martin. Este determinou a substituição do baterista Pete Best. Entrou em cena Richard Starkey, autointitulado Ringo Starr. A banda emplacou seu primeiro sucesso, “Love me Do”.

À medida que os Beatles se tornavam mais conhecidos, as composições se aprimoravam. “All My Loving” foi gravada em 1963 e ajudou a banda a se tornar um fenômeno. No ano seguinte, os rapazes estavam em Nova York no prestigiado “The Ed Sullivan Show”. Mais de setenta milhões de pessoas os assistiram. Passaram a liderar, de imediato, a lista da Billboard e iniciou-se a histeria coletiva a que se deu o nome de Beatlemania.

Com uma criatividade transbordante e um ritmo de trabalho insano, os Beatles se tornaram uma fonte inesgotável de canções que os fazia, a cada álbum, mais adorados. O empresário os mantinha sob vigilância.

Em 1966, os Beatles estavam exaustos da histeria e da perseguição dos fãs. Nos shows, mal se escutavam, já não tinham liberdade para sair às ruas sem provocar comoção e caos. Suspenderam as apresentações ao vivo. Um ano depois, lançaram um álbum inovador, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e perderam Brian Epstein, cuja morte deu início a um lento processo de corrosão das relações entre os músicos. Faltava a figura unificadora, mais velha, que comandava os garotos talentosos. Os casamentos, namoradas e descobertas que faziam aos poucos também os distanciavam do convívio diário e fraternal que até então desfrutaram. O clima entre eles piorou sensivelmente e alguns membros da equipe de apoio se afastaram, desgostosos com a falta de disciplina e as disputas.

Todas essas fraturas estão explícitas em Get Back. O filme mostra os Beatles entrando no estúdio com  algumas músicas rascunhadas, mas pela primeira vez sem canções finalizadas. Um dos pontos mais tensos do documentário é quando George Harrison deixa a banda. “Vejo vocês nos clubes”, disse ele ao sair. Deixa atrás de si uma tensão palpável. Só John Lennon não se deixa perturbar: propõe friamente que se chame o guitarrista Eric Clapton – amigo de Harrison – para substituí-lo. Esse Lennon petulante e excessivamente piadista pesava sobre os outros ao acrescentar mais desorganização ao projeto.

Harrison foi procurado pelos demais Beatles e voltou. As gravações passaram para o estúdio na sede da Apple e tudo pareceu melhorar. A presença do pianista Billy Preston trouxe leveza ao ambiente. Os Beatles se divertiam juntos, compondo e fazendo brincadeiras como nos velhos tempos. No documentário, uma das cenas mais divertidas é quando John Lennon sugere a George que enquanto não conseguisse completar um verso de “Something”, substituísse a palavra faltante por couve-flor: “Alguma coisa no jeito que ela se move me atrai como uma couve-flor”. É a hora que se descobre o segredo atrás de icônicas canções de amor: elas não descem magicamente do céu e pousam na testa de um extasiado artista apaixonado; exigem praticidade, construção, trabalho e burilamento.

No segundo semestre do mesmo ano em que gravaram as imagens de Get Back, Lennon informou a Paul McCartney que os Beatles tinham acabado e ele estava indo embora. Paul anunciou a separação numa curta entrevista durante o lançamento de seu primeiro álbum solo. O sonho acabou.

Lennon comprometeu-se totalmente com a Plastic Ono Band;  Ringo gravou dois álbuns e George Harrison lançou “All Things Must Pass”, álbum duplo, impecável, no qual emergiram canções criadas na época dos Beatles e sufocadas pela dupla Lennon e McCartney. Os Beatles seguiram suas vidas.

McCartney fez uma nova banda, com a esposa Linda, criou canções inspiradas, vendeu muitos discos e fez shows pelo mundo inteiro, mas o luto pelo fim dos Beatles o tomava e deprimia. A mágica da parceria com John Lennon era irreproduzível, mesmo com Linda. A alegria dos dois tocando juntos é perceptível em Get Back.

A crise rascunhada no estúdio não tardou a explodir em público. Lennon fustigou os antigos companheiros em entrevistas e canções. McCartney respondeu em Too Many People, canção do álbum Ram: “Você pegou sua sorte e a partiu em dois”. A resposta de John veio no álbum Imagine. A canção How Do You Sleep? nada tinha de discreta, trazia a crueldade de um verso no qual se ouvia “A única coisa que você fez foi Yesterday” e “o som que você faz é Muzak para meus ouvidos”. Paul foi à tréplica com Silly Love Songs.

Com o tempo, as relações melhoraram, mas isso o filme já não mostra. Amores reais acabam por optar por perdão e reencontro. Passada a fase de farpas trocadas, os dois se reconciliaram. McCartney visitou John no edifício Dakota, onde ele e Yoko tinham um apartamento e diante do qual Lennon foi assassinado. Quando o casal se separou, em 1973, McCartney os reaproximou e viajou até Los Angeles para ver o amigo e encorajá-lo a voltar para casa. No final dos anos 70, Lennon e McCartney conversavam regularmente. Por pouco não voltaram a tocar juntos em público em 1976. Lorne Michaels, produtor do “Saturday Night Live”, ofereceu aos Beatles três mil dólares para participarem do programa. Era uma brincadeira, mas por acaso Paul estava no apartamento de John em Nova York, assistindo ao programa. Ficaram tentados a caminhar até o estúdio, a alguns quarteirões de distância. Desistiram. Queriam paz.

Em 8 de dezembro de 1980, John Lennon foi assassinado em Nova York. Em 29 de novembro de 2001, George Harrison morreu, em decorrência de um câncer. McCartney continuou a compor canções, a fazer shows fenomenais em estádios, cantando em homenagem aos parceiros mortos, fazendo apresentações de três horas de duração para multidões. Ringo eventualmente faz shows para pequenas plateias e tornou-se o porta-voz do “peace and love”, avô adorável, fiel ao estilo amigo-de-todo-mundo, que ele desenvolveu ao longo de meio século lidando com egos monumentais.

A apresentação no alto do edifício termina com uma frase pretensamente engraçada de John Lennon e que hoje adquire os tons agridoces da profecia: “Eu gostaria de agradecer em nome da banda. Espero que tenhamos passado no teste.”

Sete tomadas do meu documentário particular

Tomada 1Íris

Você está caminhando com a sua amiga, na volta do colégio. Sorriso franco no rosto, cabelos ondulados emoldurando um rosto lindo, Íris tinha um brilho diferente nos olhos. De repente estende um álbum amarelo.

– Ouça. Você nunca mais vai querer parar de escutar. É diferente de tudo o que existe no mundo.

– ?

– Os Beatles!

O amor aconteceu. Naquele mesmo dia. Uma, duas, todas as faixas. Uma, duas, dezenas de vezes.

Na semana seguinte, olhos arregalados pela coletânea, lá estava, aos 14 anos, na loja de discos.

– Tem alguma coisa dos Beatles?

– Tem tudo.

– Eu quero um.

Conta o dinheiro economizado do lanche e do transporte. Ir a pé para a escola era a única opção.

O rapaz da loja disse para abandonar a coletânea da Íris (pecado mortal) e comprar o primeiro álbum. Depois iria escutando os demais – como havia acontecido com o resto do mundo.

She loves you…

Ah, te ama.

Às vezes o amor simplesmente acontece.

Não morre jamais. Fica bem guardado, esperando a ocasião. Então vem o Peter Jackson e escancara a realidade dos amores que estão mais vivos que nunca.

Tomada 2 – John

No dia que John Lennon morreu, desisti de  entender o funcionamento do mundo. Minha inocência morreu com aquela foto (a única) de John morto, numa pequena maca. Era uma foto em preto e branco, meio desfocada, e ele parecia apenas ter deitado ali para descansar um pouco. Um fã, disseram na TV.

Tomada 3 – George

Quando George morreu, fantasiei que Krishna, Sweet Lord, iria recebê-lo com uma roupa amarelo-dourada, flauta nas mãos, um sorriso travesso no rosto azul: “Nem demorou tanto assim, G”. E os dois dançariam a lila com as gopis (se você não é adepto dos paranauês indianos, nem tente entender essa frase, mas saiba que uma lila é um momento de festa particular com Krishna, um deus-bailarino, dado a ser amigo dos mortais e piloto de carruagem).

Tomada 4 – Tarsa

O dia nem bem tinha amanhecido e o Tarsa, 6 anos de idade, pulou sobre mim, louco de entusiasmo. “Mãe, você não vai colocar o álbum dos Beatles? Hoje é domingo, Dia de ouvir Beatles. É o Beatles’ Day”. É nisso que dá alfabetizar menino em inglês, com All Together Now.

Tomada 5 – Vinicius

Show de Paul McCartney em São Paulo. O estádio vem abaixo. Todo mundo cantando abraçado. Meu amor e meu filho Vinicius estão comigo. Na saída, o amigo Fleury provoca a ira da multidão: “Orra, mano, muito bom esse show. Nunca tinha visto os The Who tocarem ao vivo”.

Tomada 6 – Ken

Ken, o rapaz do mercado japonês em San Jose, California, fala sobre os Beatles para o dono da loja. O olho brilha tanto que parece um farol. Conheço esse brilho, Ken. Eu o vi no espelho muito tempo atrás. Puxo assunto. Na semana seguinte, noto que o mercadinho substituiu a trilha sonora dos anos 80 pelos álbuns dos Beatles. Sorrio, sacudindo a cabeça. Na volta de uma viagem a New York, dou a Ken um livro com as letras das canções dos Beatles. Ele quer me dar sakê em retribuição. Sorrio. Por vezes, Ken me para na rua para falarmos dos rapazes. Amor pelos Beatles. De novo. Eu vi acontecer.

Ken, the guy who works in a Japanese market in San Jose, California, talks about the Beatles to the store owner. His eyes are so bright, like a lighthouse. I know that glow, Ken. Long time ago I saw it in the mirror. I start a conversation. The following week, I notice that the grocery store replaced the 80s soundtrack with Beatles albums. I smile, shaking my head. On my way back from a trip to New York, I give Ken a book with the lyrics to the Beatles’ songs. He wants to give me sake in return. I smile. Sometimes Ken stops me in the street so we can talk about the boys. Love for the Beatles. Again. I saw it happening.

Tomada 7 – O amor

Na Disney, assisto Get Back. Quem está rindo tão alto, quem chorou? O amor, por certo.

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Eight days a Week

Your Mother should known