Oh, minha estrela amiga
Por que você não fez a bala parar?
(Beto Guedes – Canção do novo mundo)
Em 8 de dezembro de 1980, John Lennon foi empurrado para o território das sombras. Tinha completado 40 anos dois meses antes, era pai de um garotinho de cinco anos e de um jovem adolescente; tinha passado os últimos cinco anos recluso, fazendo pão, trocando fraldas e desfrutando da vida doméstica. Poucos dias antes de morrer havia surpreendido o mundo ao lançar um novo álbum. “Double Fantasy” trouxe de volta o velho John, cantando seu amor por Yoko e exibindo a exuberante inteligência.
Ninguém suspeitava que naquele álbum ele deixaria uma canção-testamento para o filho Sean. Ainda nem sabíamos que era uma despedida camuflada de recomeço.
Eu nem bem tinha começado a viver. Era apenas uma adolescente apaixonada pelos Beatles e especialmente por John Lennon. Lembro da sensação de incredulidade, do coração disparado, das imagens na TV se tornando borrões. Chorei, como tantos humanos naquela segunda-feira. Foi a minha primeira grande derrota para a morte.
Multidões agoniadas cercaram o edifício Dakota (onde John morava e diante do qual ele morreu), alguns fãs se suicidaram e Yoko teve de vir a público apelar para as pessoas não se entregarem ao desespero.
Aos poucos soubemos que o assassino era um antigo fã, Mark Chapman. Vimos a foto de John pacientemente dando um autógrafo ao seu algoz. Os jornais informavam que este nem tentou fugir e ficou encostado no muro sorrindo tolamente (segundo uma testemunha, com “cara de gato que acabou de comer o canário”). Trazia nas mãos um exemplar de O Apanhador no Campo de Centeio, de JD Sallinger.
E houve a foto, em preto e branco, desfocada. John na maca, sem óculos. Única foto a provar que, sim, o sonho tinha acabado.
Nada fazia sentido.
Passei a minha juventude inteira apaixonada por John Lennon. Foi difícil superar a morte dele. Sei das suas imperfeições, conheço seus paradoxos. Li o livro de Cynthia Lennon. Não exijo dele a perfeição que eu não tenho. Não o idealizo nem santifico. Vejo-o como um ser humano que compôs canções que ainda hoje me fazem refletir sobre muitas coisas. Deixam um travo de saudade no meu peito. Continuo a amá-lo em sua complexidade, talvez por me reconhecer igualmente tão sonhadora e tão longe da virtude. Um bípede em busca de respostas.
Gosto das fotos de John na fase final dos Beatles ou na era pós-Fab Four. Parecem-me mais adequadas à personalidade dele: descabelado, barba mal feita, com rugas e marcas de expressão, jeans desbotado, exibindo óculos de grossas lentes para corrigir a miopia. Cego como um morcego, igual a mim.
Ainda hoje amo aquela inteligência devoradora de adversários, a ironia pronta a saltar na jugular alheia, os risos sarcásticos, a paixão pulsante sob a pele. Ainda hoje eu me emociono com o timbre único da sua voz, com o idealismo das suas letras e sua necessidade artística de experimentar, provocar, ousar, aprender, desconstruir e renascer.
Sob todas essas camadas de desejos e contradições está um Lennon sonhador, de caretas e risadas fáceis, mas que se enxergava claramente em seus múltiplos defeitos.
Todo 8 de dezembro, dia da morte dele, ouço suas canções. Especialmente Watching the wheels, Mind Games, Gimme some truth, Isolation e Across the Universe. “Gimme…”é a minha catarse pessoal: traduz a raiva e a impotência perante a hipocrisia e as mentiras do mundo. Depois dela, é obrigatória a canção-mantra: nada vai mudar meu mundo.
Watching the wheels dói mais que as outras, por ser o recado final de um homem arrancado da vida após superar a raiva e alcançar a paz consigo mesmo. Introspectiva, consciente canção, com umas gotas de Platão nas sombras da caverna. Old Lennon respondendo aos críticos e narrando sua nova vida longe da fogueira das vaidades.
Saudades, John, queria que ainda estivesses aqui.
Queria que as canções pudessem parar as balas que atingiram o teu e o meu coração.
Quinze canções de John Lennon para se apaixonar/reapaixonar por ele (e um bônus)
Ouça a solidão e medo dele em Isolation e Nobody loves you when you’re down and out, a dor da orfandade e do abandono em Mother, a raiva da corrupção e da hipocrisia em Gimme Some Truth, o idealismo em Imagine, a luta pelo autocontrole em Across the Universe. A maturidade em Watching the Wheels e o amor pela mulher (Woman e Out of Blue) e pelo filho, na faixa 16, um bônus nesta lista: Beautiful Boy.
- Watching the Wheels
2. Gimme some truth (a letra mais catártica da minha playlist)
3. [Just like] starting over
4. Across the Universe
5. I am the Walrus
6. Mind Games
7. Isolation
8. Imagine
9. Woman is the nigger of the world
10. Old dirt road
11. Woman
12. Out of blue
13. #9 Dream
14. Mother
15. Nobody Loves You (When You’re Down And Out)
16. Beautiful Boy
Que presente! 🌷
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Um presente de Natal inesperado! Mamãe Noel Sônia Zaghetto, em plena pandemia, foi muito generosa com a gente. Obrigada! 💐💐🤶🤶🤶🤶🤶🤶
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Maravilha!! E devemos essa magnífica lembrança a você, Sonia!!
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Obra prima! Lindo texto!❤️
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