Atenção: o texto abaixo contém spoiler do filme e do livro The Power of the Dog.
Montana, 1925.
“Phil sempre fazia a castração. Primeiro, cortava a pele do escroto e a atirava pro lado; em seguida, forçava para baixo primeiro um e depois o outro testículo, cortava a membrana de arco-íris que os envolvia, arrancava e jogava no fogo, onde os ferros de marcar brilhavam. Surpreendentemente, havia pouco sangue. Em poucos instantes, os testículos explodiam como uma enorme pipoca. Alguns homens, dizia-se, os comiam com um pouco de sal e pimenta. “Ostras da montanha”, Phil os chamava, com aquele seu sorriso malicioso”.
Com essa descrição crua, Thomas Savage inicia o romance The Power of the Dog, que deu origem ao filme dirigido por Jane Campion e exibido na Netflix. Um editor tentou convencê-lo a retirar a cena. Savage se recusou e o livro foi publicado por outra editora.
Não à toa o escritor manteve a abertura. Ela é uma perfeita introdução a tudo o que se vai ler nos quatorze capítulos de um dos mais instigantes livros da literatura norte-americana. Uma narrativa direta e sóbria, mas simultaneamente metáfora. Um urro desesperado sobre a homossexualidade sufocada, um tratado sobre relações humanas e um lamento sobre a nossa incapacidade de nos comunicarmos uns com os outros, apesar do amor que supostamente nos liga. The Power of the Dog é um mergulho visceral na dor que atormenta o mundo interno e abre abismos de solidão.
Não há metáfora mais poderosa que a da virilidade atirada ao fogo, a castração que impede o nascimento da prole e, na época de lançamento do livro, 1967, era associada à homossexualidade. No filme, a diretora usa a metáfora de forma ligeiramente diferente e não na cena de abertura.
Difícil não ceder aos elogios. Com apuro visual, fotografia impecável, roteiro que honra a literatura de Thomas Savage e um elenco brilhante, Jane Campion apresenta com precisão o mundo de masculinidade, força bruta e camaradagem quase infantil no qual se escondem segredos inconfessáveis. A narrativa é fluente e pródiga em detalhes que vão do vento a agitar a penugem das planícies, à aspereza da terra e dos caracteres, aos redemoinhos de poeira, ao mugir do gado, ao filtro dos raios de sol entre as árvores e à rotina dos peões que passam a vida entre o trabalho desgastante e a diversão à base de bebidas e prostitutas.
Campion, que também assina o roteiro, adota a maneira magnífica de Savage construir seus personagens: observá-los desperta no leitor uma quase volúpia. Se George é apresentado como atarracado, limitado, decente e limpo, esmagado pela presença viril e opressora do irmão; Rose é delicada flor transferida para um terreno árido, onde se deforma e fenece. Faz jus ao nome. Peter é um mistério. Kodi Smit-McPhee (Peter), Kirsten Dunst (Rose) e Jesse Plemons (George) estão impecáveis ao encarná-los. Nos olhos do soberbo Benedict Cumberbatch está gravada a solidão atormentada de Phil. Este é um personagem que fascina e apavora.
Phil Burbank é perfeito para Cumberbatch. Personagem e ator são estrangeiros na paisagem. Ambos criam uma persona para se camuflar de homem local. Phil é um gênio que se formou com honras em Yale e esbanja talento em todas as atividades possíveis: toca banjo, faz ricas miniaturas de madeira, é um colecionador refinado e um leitor voraz, que reinventa a linguagem ao seu bel-prazer, seja fazendo trocadilhos inteligentes (cruéis, na maioria das vezes; humorísticos, em outras), seja distorcendo a gramática para demonstrar seu desapreço por alguma pessoa ou situação. Traz um vulcão dentro de si, seu rosto se contorce de ódio e é capaz dos mais duros gestos para manter o mundo sob controle.
Magro, elegante, com os olhos azuis da cor do dia, ele nunca reclama de coisa alguma e despreza a fraqueza ou quem sente pena de si mesmo. O riquíssimo Phil Burbank rejeita todo o luxo que o dinheiro pode trazer: anda vestido com a mesma roupa, carrega uma bandana com a qual limpa as feridas das mãos eternamente desprotegidas, toma banho uma vez por mês (exceto no inverno, quando não se lava). Phil se orgulha do mau cheiro que exala. Seu prazer é afrontar tudo o que não o aceita como é. Nem ele ousa dizer o que é. Sua sexualidade está sufocada sob uma inflexibilidade invencível; sua vida é dominada pela lembrança onipresente do homem que lhe forjou o caráter e a persona de cowboy durão: Bronco Henry.
Savage dedica longo tempo às mãos de Phil. Elas envelhecem antes dele. São crestadas de sol. Ele jamais usa luva – algo essencial para o desenvolvimento da trama. O destino de Phil deixa o leitor desconcertado. Algo não se completou naquele estranho homem. Tão perdido e tão desesperado, Phil é o cão, de cuja ira Peter livra a mãe. Peter dá a Phil o mesmo tratamento que dá ao coelho: uma questão prática a ser resolvida, algo necessário aos seus objetivos.
A frieza de Peter perpassa o livro todo. Até pela mãe ele é visto como inumano. Espreita com calma, aguarda a hora certa de atacar. Aprendeu – nos anos de bullying na escola – a camuflar sentimentos e reações. Se no filme o personagem enche os olhos de lágrimas diante da humilhação e seu autocontrole pode ser medido na cena do bambolê, no livro ele tem um único sinal corporal capaz de trair a tensão: uma veia a saltar da testa, como um verme retorcido. Pulsa perigosamente.
Ao contrário de Phil, Peter está no controle de tudo. Ele se move pelo rancho com seu andar peculiar, sua voz ciciante, seus tênis brancos. Marcha diante dos peões, ignorando assobios, risadinhas e nomes depreciativos; e volta pelo mesmo caminho, desafiando a todos, esfregando-lhes no rosto sua indiferença à mesquinharia. É assim que atrai a atenção de Phil que embora a enorme inteligência e a língua viperina, passa a vida a esmagar em si os desejos que o torturam.
Em um único momento, Phil baixa a guarda. E sela seu destino. Peter toca o braço dele e ali mantém as mãos, enquanto oferece ao rancheiro o pedaço de couro cru que o garoto guarda consigo. Neste instante se invertem os papeis. O quarentão Phil se mostra confiante e ingênuo: acredita que Peter quer imitá-lo, como ele próprio fez com o inesquecível Bronco Henry. O rapaz de dezesseis anos toma a trama nas mãos.
Savage usa três parágrafos para explicitar o que esteve subterrâneo durante todo o o livro. Vale-se de frases que vão instalando no leitor um alívio por finalmente ver às claras a razão da agonia do personagem. Phil sente na garganta o que havia sentido uma vez, muito antes, e “nunca esperava nem queria sentir de novo, porque a perda partira seu coração”. A mão de Thomas Savage se desfaz em ternura na revelação do amor de Phil por Bronco Henry: “Apenas uma vez, antes, Phil quisera se tornar um com alguém, e este alguém desapareceu, pisoteado até a morte, enquanto ele, aos 20 anos, a tudo assistia na cerca do curral. Ah, Deus, Phil quase havia esquecido do que um toque de mão pode fazer e seu coração contou os segundos que Peter esteve com as mãos sobre ele. Isso lhe disse o que seu coração precisava saber”.
Em sua emoção, Phil acredita que foi o destino (porque um homem deve acreditar em algo) que fez o garoto vê-lo em sua nudez naquele lugar escondido na floresta. Também o destino fez a ele mesmo, Phil, olhar para outro tipo de nudez, abstrata: a do próprio Peter, naquela eternidade em que o garoto passara, orgulhoso e desprotegido, pelas tendas dos peões, sendo alvo de zombaria – um pária. “Phil sabia, Deus sabe que ele sabia, o que é ser um pária. Por isso odiou o mundo antes que este o odiasse primeiro”. Está finalmente revelado o que vai na alma de Phil Burbank.
No livro, um Phil adoentado desce para o café da manhã, e seu olhar sai da mão ferida para vaguear “curiosamente suave” pela mesa onde todos se assentam. Ele sabe. Um desamparo conformado e triste, expresso numa única frase que corta a alma do leitor.
Com que perícia Savage tece ao longo de treze capítulos a imagem de um homem preconceituoso, cínico e maldoso, e em algumas poucas frases o revela em comovente fragilidade.
Naturalmente, livros não cabem em filmes. Este especialmente, não poderia transpor para a tela as elaboradas filigranas de relações que se constroem e deterioram ao sabor de um longo tempo que se derrama pelas páginas. Jane Campion – uma diretora segura e sensível – fez as esperadas concessões e pequenas mudanças a fim de resumir a trama detalhadamente cozida no correr dos capítulos.
No livro não há Phil falando explicitamente de uma noite na qual dormiu abraçado a Bronco Henry. A presença deste é mais diluída e sutil. Da mesma forma, Phil não queima as flores de papel de Peter. A crueldade dele, na maioria das vezes, é mais sofisticada, camuflada, preferencialmente verbal e psicológica. Como na cena da chegada de Rose à mansão ou quando ela luta para tocar uma canção no piano, enquanto Phil, com o banjo, executa com perícia e sem piedade a mesma música no andar de cima. E o faz vezes seguidas, até quebrar a cunhada.
Particularmente, como leitora de Savage, apreciei no filme a magnífica cena do lenço com as iniciais de Bronco Henry, metáfora que deu ares de realidade a um amor muito mais disfarçado no livro. É de uma sensualidade poética que, por mil razões artísticas, imediatamente associei ao mais icônico ballet de Nijinsky, L’après-midi d’un faune. Uma homenagem de Campion ao espírito do livro. Ao conduzir o olhar do telespectador para o que interessa, de uma certa forma ela libertou o espírito de Phil de suas férreas amarras. Deu-lhe um momento de alívio.
O que não entrou no filme ficou eternizado em pequenos detalhes que a irmandade dos leitores de Savage não deixa de perceber, com emoção – diga-se. É o caso do episódio das luvas indígenas (que pertencem a outra cena).
Uma das mais deslumbrantes habilidades de Thomas Savage é sua capacidade de eviscerar a incapacidade humana de se expor, conhecer e aceitar. Todos os personagens de The Power of the Dog vivem em seus mundos isolados, sedentos de companhia e compreensão. Rose se esconde do marido, Peter se oculta da mãe, Phil não se expõe ao irmão e a mais ninguém, os pais se escondem dos filhos Phil e George ao escapar da atmosfera opressiva do rancho se transferindo para um hotel de Salt Lake City; Rose se ressente do filho não enxergá-la em sua dimensão de ser humano, mas apenas uma prodigiosa beleza que deve ser protegida a qualquer custo.
Outro ponto alto do romance e do filme é a complexa relação entre os irmãos Phil e George, que, mesmo adultos, dividem o quarto como faziam na infância, reagem com inabilidade adolescente a referências sexuais e chamam os pais de Old Gent e Old Lady (Velho Senhor e Velha Senhora). Savage é muito preciso ao mostrar o longo processo de afastamento de George e Phil. De uma infância muito próxima, aos poucos os irmãos se isolam. Phil precisa de George para se manter no passado, no qual Bronco Henry ainda vive. Por isso sua desesperada e hostil reação quando percebe que George encontrou em Rose uma nova parceria emocional. O mundo de George seguiu para outra fase. Ele já não deseja mais dividir o quarto com o irmão e há muito abandonou a cabana que construíram na floresta para ler revistas picantes longe do olhar escandalizado dos pais. Fechado em si mesmo, Phil não percebe o que se passa na alma de George e os buracos emocionais que deixou ao oprimi-lo e tratá-lo por nomes depreciativos, como “fatso”(gordão).
Na construção do filme, há de se apreciar a exatidão das imagens de Jane Campion. O dedo ferido violando a flor de papel cortado, as mãos acariciando as curvas de uma sela, os detalhes de corpos de homens e animais. Há um desfilar de misérias e desejos em todo o filme, que a diretora explora com perícia. Campion optou por sublinhar, em personagens e cenas, o contraste entre áspero e suave, brandura e selvageria, silêncios e explosões de ódio ou de desamparo. A paisagem gloriosa das montanhas contrasta com a mansão dos Burbank. O externo, opulento e claro, se opõe aos interiores sombrios e pesados. Cada cenário interno traduz os personagens e seus mundos de tormenta. Os painéis de madeira cor de vinho da mansão Burbank são opressivos. Há um frio e uma escuridão que tudo penetram e corrompem.
The Power of the Dog tem tremenda força. Não há necessidade de armas de fogo nesse faroeste. Os duelos são inteiramente emocionais.
Oito comentários extras sobre The Power of the Dog
- “Ataque dos cães” é uma das piores traduções de títulos. Basta lembrar que o título The Power of the Dog(O poder do Cão), além de mais forte, vem do Salmo 22, versículo 20 (“Livra a minha alma da espada, e a minha amada da força do cão”) que também é a epígrafe do livro de Thomas Savage.
- Thomas Savage era homossexual. Casou-se com a amiga e escritora tardia Elizabeth. Ela sabia da homossexualidade do marido. Tiveram três filhos e vários netos – o que não o impediu de ter diversos discretos relacionamentos homoafetivos. Tinham, savage e Elizabeth, um relacionamento muito amoroso e ele manifestou várias vezes o carinho que tinham um pelo outro e o quanto amava as conversas entre eles. Savage guardou a foto dela na carteira até o fim da vida.
- The Power of the Dog é o melhor dos treze romances de Thomas Savage. Tem várias pitadas autobiográficas. O personagem Peter é bastante inspirado na própria experiência de Savage, cuja mãe, extremamente bonita, casou-se com o proprietário de um rancho em Montana. No livro há diálogos muito profundos sobre a relação padrasto-enteado e sobre os sentimentos de um filho ao ver a mãe dividir um quarto com um outro homem, além de menções nevrálgicas à beleza da mãe de Peter.
- Ao ser lançado, The Power of the Dog vendeu apenas mil exemplars, embora tenha tido uma recepção muito positiva da crítica. Apenas uma resenha tocou na questão homossexual.
- Durante anos desejei escrever sobre um dos mais complexos personagens da literatura americana: Phil Burbank, a alma do livro The Power of the Dog. Agora, o filme de Jane Campion, na Netflix, permite destrinchar esse magnífico estudo da alma humana e seus calabouços. O livro de Savage e a vida do autor são fundamentais para entender profundamente o filme de Campion. Este é uma bela homenagem ao livro. Poucas vezes, o cinema se rendeu tão completamente à fonte literária. Para quem leu The Power of the Dog, é com um arrepio que se vê os principais diálogos do livro transcritos no filme, com uma exatidão que traduz respeito.
- Um detalhe que o filme não explicita e que parece “justificar” a morte de Phil. Ele se aproxima de Peter com um objetivo bem definido: isolar Rose e fazê-la se divorciar de George. A mulher que já se tornou alcoólatra, que percebe o marido se distanciando e não consegue dizer ao filho que é desprezada pelo cunhado, irá, nos planos de Phil, ser definitivamente destruída quando perceber que Peter se uniu ao homem que a tortura, que a toma por uma aproveitadora e a humilha por ter se tornado alcoólatra.
- Há cães espalhados ao longo do romance e do filme. Um deles, o cão que apenas Bronco Henry, Phil e Peter enxergam nas sombras das montanhas.
- Há quem deseje – em uma leitura não muito esforçada – aproximar os caracteres opostos de George e Phil com os dos irmãos de A Leste do Eden, a monumental obra de John Steinbeck na qual há igualmente rivalidade fraterna e referências bíblicas. Por extensão, força-se uma nova representação de Caim e Abel. Não é o caso.
Magnífico. Para mim uma apresentação de um autor que coloco na minha lista para conhecer. Admirei o filme é o que chamou a tensão o rancor e o sofrimento da alma do Phill . Alguém tão cheio de dons e que não se encontra , não cabe em seu tempo e não tem lugar no mundo.
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Um texto perfeito que amplia a nossa compreensão de vários detalhes do filme, nos estimula a rever o filme, a ler o livro de Thomas Savage e nos leva também a outeas e inúmeras reflexões.
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Republicou isso em REBLOGADOR.
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Sua escrita preencheu e preencherá minhas longas horas de olhos abertos…
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