Para vovó, com saudade

Minha avó tinha um jeito único de lidar com a pobreza e de educar os filhos. Acreditava em solução para tudo. “Só não tem jeito pra morte. O resto, a gente consegue”, disse a si mesma, todos os dias da vida, amparada em uma fé que era malha de ferro a proteger a seda do seu coração. Todos os anos, no Natal, ela revivia uma das suas mais belas criações. É a história que vou agora contar.

1943.

É começo da tarde, mas tudo está escuro.  A chuva desaba sobre a casa, o quintal, a floresta. Novembro é mês de chuva na Amazônia, o peixe some dos rios. No inverno, nada brota na terra encharcada e pobre. Os bichos do mato também se recolhem e a caça desaparece. Debaixo da casa a água escorre e transforma a terra vermelha em lama. Os meninos olham por entre as tábuas do assoalho, brincando de enxergar mini rios no chão.

A mãe está à janela, vendo as gotas grossas a pingar do céu. Os dedos deslizam pelos cabelos da filha adormecida. Dez crianças espalhadas pela casa. As roupas, uns trapinhos.

Os relâmpagos iluminam a casa sem pintura.

A mãe está muito calada. Pensa no almoço do dia seguinte: uma lata de sardinhas, quatro ovos e um resto de farinha de mandioca.

O marido está no mar incerto. Trabalha como telegrafista num navio, em meio à guerra. Sim, há uma guerra na Europa – e os submarinos podem atacar a qualquer instante. Ela não quer pensar nisso. Já ficou viúva uma vez.

Tantas vezes a fome lhe rondou a casa. Em todas as ocasiões, a mãe a olhou direto nos olhos e a enxotou. Quando estava na sua cidadezinha, era mais fácil. Erguia os olhos para os céus e pedia algo, com tanta humildade que ninguém mais ouvia. Em seguida, pegava a canoa e descia o rio, à procura das bênçãos carregadas pelas águas. Recolhia frutos selvagens para os filhos comerem, uns peixinhos miúdos (que até dava pena) e as preciosas sementes que flutuavam ao sabor da correnteza. Delas extraía o óleo, que vendia para os vizinhos usarem nas lamparinas ou fazerem remédios. Os dedos ficavam feridos por alguns dias, depois saravam.

De manhã, acorda os meninos. Serve um café ralo e farofa de ovos. Até o fim do dia, haverá de encontrar algo. Vai mandar as três crianças mais velhas para a fila de distribuição de comida. Vão trazer alguma coisa dada pelo governo: leite condensado, arroz, talvez carne enlatada. Seja o que Deus quiser.

O Natal é dali a um mês. Não haverá presentes. As crianças têm medo no coração: da guerra, da fome, do mundo.

À noite, ela chama os filhos. Tem uma história para contar.

Fala de uma família pobre, tão pobre que não tem rede ou cama para dormir. Com sua voz macia, a mãe conta sobre um homem e sua mulher fugindo da maldade de um rei. As crianças veem o casal atravessar areias escaldantes e chegar escondido a uma terra estranha. “Ninguém lhes dá abrigo ou comida. A mulher está grávida e a criança nascerá em breve. Ela se deita num estábulo, entre bois, ovelhas e burricos. Está cansada. O bebê virá ao mundo naquele lugar escondido, na noite do dia 24”, sussurra a mãe. E os meninos engolem em seco, penalizados. Temem pelo bebê que não conhecem.

A mãe, porém, está calma. Ela sorri quando diz aos filhos: “Neste Natal nós não receberemos presentes. Mas o casal e o bebê que vai nascer são ainda mais pobrezinhos do que nós. Por isso, vocês vão dar um presente a ele”. E aponta para as palhas secas acumuladas num canto da casa.

“Vamos fazer um forrinho de palha para a manjedoura do bebê que vai nascer. Mas não é uma tarefa muito fácil. Vou lhes contar um grande segredo: esse bebê não dorme em palhas comuns. Ele é um príncipe, o Príncipe da Paz, mas ninguém sabe disso. Palhas são um pouco ásperas para a pele do principezinho. É preciso amaciá-las com um gesto de amor. Assim, vocês só poderão colocar uma palha na manjedoura vazia quando fizerem algum ato de bondade. Os adultos também vão fazer isso: eu, a tia Nair e a Ceção. A bondade vai impregnar a palha, vai torná-la suave como algodão e brilhante como a luz do dia. Vocês não conseguem ver, mas a palha de amor também embalará o sono do bebê Jesus com as mais doces melodias”.

Palavra de mãe é lei na infância. De olhos arregalados, as crianças souberam que teriam um mês para forrar a manjedoura. Sentiam pena do pobre príncipe em cama ou rede, nascido numa terra distante, longe do seu palácio de paz.

Pelas semanas seguintes, trouxeram palhas para o presépio arrumado pela tia Nair. Aproximavam-se devagar e punham a palhinha com grande cerimônia e cuidado. Saíam de lá estranhamente emocionados. Tão concentrados estavam, que esqueceram de lamentar por não haver presentes para eles mesmos.

Na noite de Natal, a manjedoura está repleta de palhas nascidas de perdão, generosidade, compaixão, gentileza e bondade. Pouco antes de colocar o bebê na caminha forrada pelo amor, alguém bate à porta. É o pai que chega. Traz consigo uns brinquedinhos baratos – carrinhos e umas bonequinhas de plástico do tamanho da palma da mão – dois refrigerantes e um bolo simples, desses de padaria.

O dia amanhece glorioso. Um sol imenso sobe por trás das árvores e espanta a neblina. Põe cores na Terra. A mãe havia acordado mais cedo e por um longo tempo pôs-se a arrumar as palhinhas na manjedoura. Em seu coração repete agradecimentos e pede secretamente ao recém-nascido que haja paz.

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Grãos de areia escorreram na ampulheta do tempo.

Numa cama de hospital, a mãe agoniza. Tem 94 anos e filhos cochilando após árdua vigília. Ora em silêncio. O sono a toma devagarzinho. Talvez esteja sonhando, pois ouve o familiar ruído de remos no rio. Então vê o menino descer da canoa. Pequeno e magro, traz nas mãos as bênçãos das águas, frutos e sementes que a correnteza carrega. Ele se aproxima como se pisando em nuvens. Beija-lhe os cabelos branquinhos e só então a mãe percebe que veste algo tecido de sol e de canções. “Palhas”, diz com suavidade, abrindo os braços para ela. E há paz.

(Texto: Sonia Zaghetto. Foto: Elza Lima)

O Messiah, de Handel

O movimento For unto us a Child is born integra o Messiah (HWV 56), oratório composto por George Frideric Handel em 1741. O libreto é retirado da Bíblia. O texto do livro de Isaías (capítulo 9, versículo 6), anuncia a vinda do Messias como o Príncipe da Paz. Diz: Porque um menino nos nasceu,
um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Podero­so, Pai Eterno, Príncipe da Paz
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