“California poppies … are of a burning color — not orange, not gold,
but if pure gold were liquid and could raise a cream,
that golden cream might be like the color of poppies.”
— John Steinbeck in East of Eden (1952)
Comprei flores no inverno. Uma tentativa de acariciar meu coração que sempre se faz pensativo e silencioso na véspera do Ano Novo. Escolhi poppies, papoulas, flores associadas à pacificação, a lembranças queridas e ao recomeço. As pétalas que parecem papel de seda se converteram em colorida poesia, alegoria do novo ano que se inicia. Trouxeram cores de van Gogh para a paisagem antes desenhada a carvão.
Nunca soube controlar esse vago sentimento de desamparo que me toma no último dia do ano. Eu me vejo sozinha, entre duas portas fechadas. Uma se fechou suavemente atrás de mim, levando consigo os rostos amigos que partiram e um ano inteiro de vida. A outra é mistério.
No jardim da floricultura, sob uma chuva fina e gelada, percorri alamedas de ciclâmens, prímulas e camélias, que florescem no frio. Eram belas, mas eu não as quis. Então vi as papoulas. Apenas duas flores – uma vermelha e uma rosada – e um botão fechado, curvado sobre si mesmo. Encolhidas, quase murchas, a folhagem amarelada, deslocadas no inverno, estavam em promoção. Menos de cinco dólares pelas quatro mudinhas. Carreguei-as no colo, molhadas. Pareciam tremer de frio. Tive vontade de acariciá-las. A vendedora foi implacável:
– Não são plantas perenes. Dentro de um ano estarão mortas. E as flores vão murchar em poucos dias.
Essa frase abriu em mim um mundo de pensamentos. Efêmeras plantas, com data de desaparecimento assinalada no meu calendário novo. Tenho um ano inteiro para lhes doar carinhos e cuidados, pois estes podem ser oferecidos mesmo aos seres mais pequenos. Prometo lhes dar a felicidade possível às flores. Não é exatamente o que acontece quando recebemos amores em nossa vida? Temos um tempo determinado para oferecer-lhes preciosidades e com eles construir doces memórias. Depois, um de nós seguirá primeiro rumo ao desconhecido. Ficarão as marcas do amor, as memórias construídas, a doçura do que se deu e recebeu.
Em casa, plantei-as no vaso, coloquei água tépida e a luz artificial que – diz a propaganda – faz papel de sol em dias nublados. Reagiram aos cuidados. Bastou uma hora para abrirem as pétalas. Agora parecem borboletas de papel sobre a minha mesa. Asas estendidas, simulando voos entre meus livros. Não me canso de vê-las. Sua beleza me captura completamente. Têm um caule fino e firme, com mini penugem. Frágeis e delicadas. À janela, olho as finíssimas pétalas, buscando sinais de que as flores vão murchar em breve. Já dão sinais de cansaço. Há microscópicos rasgos nelas, e manchinhas que se assemelham a rugas. Desfazem-se, desvanem-se devagar. O arrepio que sinto é o meu apego que as deseja perfeitas e eternas. Eu o controlo com um sorriso agridoce: tudo passa, todos passam. Haverá um dia para a morte – delas e minha. Mas antes disso – já disse alguém – todos os outros dias são de vida. Plena, festiva, abundante, corajosa vida. Desfrutá-la é rito de prazer, gesto de gratidão. O botão que lentamente se abre me confirma a disposição: uma nova flor em breve estará aqui para cumprir sua jornada no ciclo da vida, quando as outras duas tiverem partido.
Gosto tanto de papoulas. Flores com história, símbolos de superação sobre a dor e a morte. Diz a lenda que após as guerras napoleônicas, no início do século 19, a terra na Europa se fez deserta, árida e infértil. Pouco depois, as flores vermelhas da papoula brotaram sobre os corpos dos soldados caídos. Tornaram-se símbolo de esperança, de paz e de recomeço.
Quando a I Guerra Mundial acabou, um século depois, novamente o chão da Europa estava coberto de mortos. Mais uma vez floresceram as papoulas rubras. Um poeta as tornou musas nos campos de Flandres. A humanidade as usa hoje para honrar seus mortos queridos. São a paz após as tormentas.
Minhas papoulas são da California. Selvagens, resistentes, tornaram-se a flor que representa o Estado. Estão desenhadas nas placas das cênicas rodovias que margeiam o oceano Pacífico. John Steinbeck as descreveu com o mesmo amor que lhes dedico: “Sua cor ardente… nem laranja, nem ouro; mas se ouro puro fosse líquido e pudesse gerar um creme, esse creme dourado poderia ser como a cor das California poppies”.
A ciência deu outras cores às pétalas, mas a natureza caprichosa manteve o ouro de Steinbeck no centro das flores. No dia que elas não mais estiverem aqui, lembrarei de sua delicada beleza, da alegria que me deram por simplesmente existir. E serei grata, profundamente grata, pela sublime oportunidade de compartilhar um tempo com elas.
Por breve que tenha sido, este milésimo de segundo no relógio do universo é precioso e único. Por isso elas estão ao lado das minhas pedras zen, empilhadas a me relembrar da impermanência de todas as coisas. Minhas poppies são a natureza viva me oferecendo a lição budista do desapego e me convidando a apreciar o instante presente, carregado de dádivas.
Mesmo agora, quando encerro este texto, meus olhos cheios d’água estão preenchidos pelas pétalas rosadas e vermelhas. Papel de seda a soprar esperança no meu mundo.
Parecem dizer: venha 2022, seja bom para nós. Mas, se não for, saiba que nos encontrará de cabeça erguida, prontos a encarar qualquer desafio com a coragem, a paciência e a serenidade de quem aprendeu a viver.
Feliz Ano Novo, queridos.
Papoulas, lendas e fatos
A papoula vermelha é uma das flores silvestres mais populares do mundo. Símbolo de ressurreição, paz, vida eterna, esperança, ela costumava ser depositada sobre os túmulos desde a antiguidade. Após as guerras napoleônicas, as lendas diziam que as flores brotavam magicamente em torno dos corpos dos soldados mortos, como um recado da natureza para advertir os homens sobre a sua insanidade e convidá-los à paz.
A flor consolidou-se como símbolo de lembrança dos soldados mortos nas guerras por causa do tenente-coronel canadense John McCrae e da professora norte-americana Moina Michael. McCrae, poeta e médico que serviu como soldado durante a Primeira Guerra Mundial, escreveu o poema memorial de guerra In Flanders Fields, no qual se refere às papoulas vermelhas que cresceram sobre os túmulos dos soldados caídos. Assim, deu início ao simbolismo das flores no Remembrance Day, quando se costuma pregar nas roupas papoulas vermelhas feitas de papel.
Após o fim da Guerra, em 1918, Moina Michael escreveu um poema de resposta a McCrae, We Shall Keep the Faith, que declarava oficialmente que as flores de papoula vermelhas seriam uma homenagem perene aos soldados que morreram em combate.
Moina Michael escreveu um poema de resposta, “We Shall Keep the Faith”, no qual afirma que as flores de papoula vermelhas seriam uma homenagem perene aos soldados que morreram em combate. Hoje, a papoula tornou-se um dos símbolos memoriais mais reconhecidos do mundo. Mesmo um século após o fim da Primeira Guerra Mundial, as pessoas ainda continuam a usar a flor de papoula vermelha como um símbolo de lembrança. Milhões de pessoas do Commonwealth em todo o mundo, do Reino Unido ao Canadá e à Nova Zelândia, usam a flor no dia 11 de novembro para comemorar o aniversário do armistício de 1918, conhecido como Dia da Memória ou Dia do Armistício.
Nos Estados Unidos a tradição se desenvolveu de forma diferente. Os americanos usam a papoula vermelha no Memorial Day, celebrado na última segunda-feira de maio. Na América, 11 de novembro é formalmente conhecido como o Dia dos Veteranos, que homenageia os veteranos de guerra ainda vivos, enquanto o Memorial Day destina-se a homenagear o sacrifício dos homens e mulheres que deram suas vidas lutando pelos Estados Unidos.
In Flanders Fields
“In Flanders Fields” é um poema no qual o médico e poeta canadense John McCrae se refere às papoulas vermelhas que cresceram sobre os túmulos dos soldados caídos. McCrae escreveu o poema em 3 de maio de 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, um dia após ter visto a morte de seu amigo, o tenente Alexis Helmer em Flandres, na Bélgica.
Eis o poema:
In Flanders fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place; and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.
We are the Dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved and were loved, and now we lie,
In Flanders fields.
Take up our quarrel with the foe:
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high.
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow
In Flanders fields.
We Shall Keep the Faith
Moina Michael
Oh! you who sleep in Flanders Fields,
Sleep sweet – to rise anew!
We caught the torch you threw
And holding high, we keep the Faith
With All who died.
We cherish, too, the poppy red
That grows on fields where valor led;
It seems to signal to the skies
That blood of heroes never dies,
But lends a lustre to the red
Of the flower that blooms above the dead
In Flanders Fields.
And now the Torch and Poppy Red
We wear in honor of our dead.
Fear not that ye have died for naught;
We’ll teach the lesson that ye wrought
In Flanders Fields.
Papoulas da Califórnia
Por toda a Califórnia, a Golden Poppy, a Papoula Dourada, cresce selvagem, inundando a terra com suas pétalas de seda, irradiando seu brilho laranja-dourado. Como a flor oficial do estado da Califórnia, ela é retratada em placas de boas-vindas ao longo das rodovias ao entrar na Califórnia e nas placas oficiais da Scenic Route.
O State Scenic Highway System na Califórnia, nos EUA, é um conjunto de rodovias designadas pelo Departamento de Transporte da Califórnia (Caltrans) como rodovias panorâmicas. Eles são assinalados pela flor, pintada dentro de um retângulo.
O lugar da Golden Poppy como a flor oficial do estado é fruto do talento e da determinação de Sara Plummer Lemmon. Durante a década de 1890, a botânica Sarah defendeu a adoção da papoula dourada como a flor da Califórnia, inclusive escrevendo o projeto de lei aprovado pelos deputados e assinado pelo governador George Pardee em 1903.



















Feliz Ano Novo! Que possamos desfrutar de seus textos ainda mais em 2022! E que a energia que você emana volte em dobro para você!
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Tão, tão comovente.
Obrigada por mais um texto que reverbera em mim e acarinha o meu espírito (que anda tão envergado).
E que venha 2022. Que ele só seja bom.
Um abraço apertado, daqui dos trópicos.
PS: papoulas foram a minha primeira paixão, em flores. Ai, meus 17, 18 anos…
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Bom ano novo, querida Sonia!
Obrigada por compartilhar tão generosamente esses momentos de delicada beleza!
Com carinho
Thanya
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Sônia Zaghetto, muito obrigada por acariciar nossos corações com seus textos tão leves, tão transbordantes…
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Muito obrigada por ler, minha querida.
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