Hoje sonhei contigo. Estávamos de pé sobre uma cidade destruída. Havia um grande breu. Pó, cinzas e fragmentos de mundo nos cercavam. Só o teu olhar dourado me protegia de toda dor.
Tu me dizias, solene, que devo evitar o medo. Ele destrói. Devora devagar a esperança, apaga o brilho deste meu olho que insiste em ver a beleza pulsando em cada átomo.
No fim desta jornada – sussurraste ao meu ouvido – estaremos só nós dois, despidos de ilusões mas tendo um ao outro, pois sempre caminhamos juntos numa trilha vetada aos demais.
Eu te respondi, num murmúrio: És o meu acalanto, minha canção de ninar. E és também silêncio e a liberdade da minha solitude. És comigo.
Partilhamos cada milha dessa longa estrada, polindo a aspereza das pedras, colhendo frutos maduros. Com riso de flor pequena, brisa entre as folhas, manhãs de domingo, doçuras e algo de sal.
A tua é a sabedoria que me salva, a mão junto da minha quando tremo, o caminho perfeitamente traçado.
Contigo há a solidez, a realidade direta e simples.
Quando temi a morte, encorajaste-me a viver, desfrutando cada instante como dádiva, pois o tempo de tudo terminar é inevitável. Melhor acostumar-se serenamente à ideia para que a surpresa não te apanhe entre distrações, foi o teu conselho. Tuas palavras se gravaram em mim como a fogo: acorda para cada dia como se fosse o último. É um imenso favor estares ainda respirando. Há os que morrem ao nascer, sem razão alguma. Outros se vão na flor da idade. Tu ainda estás aqui. Celebra, portanto. E não te deixes intimidar pelas doenças. Elas chegam para ti e para todos – como a chuva que desaba sobre qualquer um ou o sol que surge indiferente aos desejos. Faz parte da experiência.
Tudo isso disseste, colhendo ainda na pálpebra as gotas que eu deixava cair.
Em outro instante, eu me sentia aniquilada, tremendo sob tristezas várias, com a boca roxa de frio, mas teus lábios sopraram nos meus uma alegria nova. Teu calor feito de risos tolos, de prazeres mínimos e de gargalhadas imensas me puseram em estado de arco-íris. Um poder só teu.
Agora, acordada, peço-te:
Beija-me, enquanto ainda respiro.
Beija-me enquanto ainda não caminhamos sobre os destroços deste mundo instável e louco.
Beija-me, portanto, minha alma. Ainda uma vez põe a poesia de volta à cena, acende a luz em meio a essas trevas, cantarola alguma canção antiga – de ninar, de encantar, de curar – e derrama o teu mel mais puro nos meus lábios.
Enquanto estamos aqui.
—–
Pintura: Rey Vinas. “O estranho peixe (ou Da escuridão à superfície)”. Óleo sobre tela.
Como é por dentro outra pessoa?
Fernando Pessoa (1934)
Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.
(in Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1955.)
Abaixo você encontra uma seleção de canções de alguma forma relacionadas ao texto de hoje.
George Harrison. What is Life
Aretha Franklin canta ao vivo “(You make me feeel like) A Natural Woman” diante da emocionada compositora da canção, Carole King, e do casal Obama.
Leila Pinheiro. Serra do Luar, de Walter Franco.
“Viver é afinar um instrumento, de dentro para fora; de fora para dentro. Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo“.
Dream Theater (feat. Theresa Thomason) – The Spirit Carries on – Ao vivo em New York. A canção faz parte d celebrado álbum Metropolis, Pt. 2: Scenes From a Memory
Tom Hanks (Andrew) e Denzel Washington (Joe) na mais famosa cena de Philadelphia. Maria Calas canta a ária La mamma morta, da ópera Andrea Chenier. Assista aqui a versão com legendas em português.
O personagem de Tom Hanks diz: “Essa é a minha ária favorita. Esta é Maria Callas. Andrea Chenier, de Umberto Giordano. Esta é Madeleine. Ela está dizendo: durante a revolução francesa, uma multidão incendiou sua casa, e sua mãe morreu… salvando-a. “Olha, o lugar que me embalou está queimando“. Você pode ouvir a dor em sua voz? Você pode sentir isso, Joe? Entram as cordas, e isso muda tudo. A música se enche de esperança, e isso vai mudar novamente. Escute… escute… “Eu trago tristeza para aqueles que me amam“. Oh, aquele violoncelo solitário! “Foi durante esta tristeza que o amor veio a mim. Uma voz cheia de harmonia. Ele diz: “Siga vivendo, eu sou a vida. O céu está em seus olhos. Tudo ao seu redor é apenas sangue e lama? Eu sou divino. Eu sou esquecimento. Eu sou o deus que desce do céu e faz da terra um paraíso. Eu sou o amor… eu sou o amor.”
Nick Cave. Into my Arms. (Letra e tradução aqui)
Soninha, que texto lindo! E o link com esta cena de Philadelphia é perfeito!
Agora que saí do Facebook vou te acompanhar por aqui!
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Arthur, querido. Entro tão pouquinho no Facebook. Não sabia que você havia saído. Se você seguir o blog, receberá uma notificação a cada postagem que eu fizer (e geral, uma por semana). Um abraço, meu querido.
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Um esplendor, um acalanto à alma, do início ao fim.
Sonia Zaghetto, encantadora das palavras.
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