Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo da luz suave, em que, sobre os telhados da cidade interrompida, o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a existência misteriosa de astros....
Fernando Pessoa/Bernardo Soares (O Livro do Desassossego)
No primeiro dia de primavera há uma chuva leve sobre a cidade e meu coração tateia em busca de algo indefinível. Sonho com pássaros impossíveis a pousar nos meus ombros, anjos particulares prontos a dissolver as sombras fugidias, um antídoto contra o medo e esse ruído oco nos dias que se arrastam.
O equinócio de março trouxe horas de claridade perfeitamente iguais às da noite. O sol passa pelo Equador celeste. Sabe aonde vai, caminha célere em direção ao norte. Mas meu coração, cá embaixo, tropeça, pobrezinho, na imensa agonia do viver.
O mundo é um bailarino agitado. Gira velozmente ao som de tambores de guerra, espalha véus de sombra sobre o rosto do futuro e faz subir rolos de escura fumaça no horizonte. Coloca-os no lugar onde ontem havia coisas prosaicas e simples – pão assando no forno, bicicletas e canções de ninar.
Tenho conversas comigo mesma. Sobre incertezas, brevidade, finitude, impermanência. Por vezes me sinto como Davi, o salmista, dividido entre a sublimidade da canção e a carne que ferve, empurrando o coração em direção a abismos, caminhos tortuosos e tormenta, até deixá-lo de mãos vazias e a cabeça coberta de cinzas.
Mas, lá do alto, os pássaros impossíveis tudo veem. E vêm em meu socorro com o seu cortejo de apaziguamentos.
Fazem flutuar em torno de mim as cores de um dia novo, carregado de promessas. Estou nas montanhas da Califórnia. Há solenidade nas águas quietas do lago Berryessa, uma indiscutível majestade nos paredões de pedra que se inclinam sobre a estrada, abelhas anunciando calor.
Deito no chão, o capim pinica minhas costas e meu olhar está fixo no claro céu azul. De repente lembro de uma cena escrita por Liev Tolstoi. Em “Guerra e Paz”, o príncipe Andrei Bolkónski está ferido no campo de batalha de uma guerra napoleônica. Mas já não presta atenção aos mortos, ao gemido dos feridos, ao barulho ensurdecedor dos canhões. Fita, embevecido, o céu solene, com nuvens que deslizam tranquilas. “Como o céu está diferente de quando corríamos, lutávamos (…) como é que eu não via antes esse céu alto? Tudo é vazio, tudo é ilusão, exceto o céu infinito.”
Penso no príncipe Andrei enquanto meu olhar pousa nas encostas das montanhas. Estão cobertas por flores roxas e amarelas. Papoulas douradas florescem em meio aos galhos mortos e enegrecidos por algum incêndio no verão passado. São gotas de sol brilhando no mato desgrenhado. Uma delas parece uma borboleta. Tomo-a entre os dedos, com cuidado. E beijo-a de olhos fechados. Os lábios permanecem sobre a seda das pétalas, numa prece por pessoas que desconheço, num lugar longe daqui. Quisera se convertesse em berço para crianças cujas faces nunca vi, abrisse braços protetores para estranhos amedrontados, limpasse delicadamente rostos manchados de sangue e poeira, colasse cuidadosamente os cacos dos sonhos despedaçados.
Abro os olhos e vejo uma camada de encantos pairando sobre a terra coberta por uma penugem verde. Tapete de relva e flores selvagens.
As cerejeiras e pessegueiros deixam cair pétalas rosadas sobre a terra coberta de orvalho. Aveludadas e finas, dançam no ar, carregadas pela brisa fria de março. Elas me alcançam e me forçam a afastar os olhos dos galhos secos de árvores que parecem mortas. Trazem-me de volta à memória o ferido príncipe Andrei contemplando Bonaparte, seu herói até então. Naquele instante, Napoleão lhe parecia um homem tão pequeno, insignificante em comparação com que agora se passava entre a sua alma e aquele céu alto e infinito, com nuvens fugitivas.
Cento e cinquenta anos depois de Tolstoi publicar “Guerra e Paz”, outros russos estão no campo de batalha. Outros generais, novos cadáveres e feridos. A mesma angústia e dor. E, ainda uma vez, a voz da Natureza vem abafar os ruídos dos homens. Ela chega, generosa, e planta na carne macia do meu coração a semente capaz de me reerguer: um beijo de flor chamado esperança.
Eu espero por ti, primavera.
Hineni.
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Texto e Fotografia: Sonia Zaghetto.
“Hineni” (הִנְנִי) é uma frase hebraica que significa “Eis-me aqui” ou “Aqui estou”. Não indica a localização geográfica. É uma declaração poderosa de compromisso e fé. Na Bíblia, hineni é a resposta de Abraão ao chamado divino.
Abaixo você encontra fotografias das reconfortantes paisagens de Lake Berryessa, em Napa Valley, Califórnia, e um vídeo de Leonard Cohen cantando Hallelujah, a canção que traduz a humanidade dilacerante do rei-poeta Davi.





















