Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas” (Salmo 22. Davi)

Conta a tradição cristã a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém. Sentado sobre um burrinho, foi saudado pela multidão em delírio. Os quatro evangelistas narram a mesma história: foi recebido por gente que estendia as suas vestes sobre o chão poeirento. As patas do burrinho pisavam os ramos das palmeiras espalhados para enfeitar seu caminho. Os devotos sorriam, bradando entre amor e fé: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! 

Menos de uma semana depois, o mesmo Jesus Cristo estava morto. Após humilhações públicas e torturas, foi crucificado – a mais degradante morte que o Império Romano destinava aos que infringiam a Lex Julia Majestatis. Horas antes fora traído, negado e abandonado pelos amigos mais próximos; vira o governador Pilatos lavar as mãos em público e a multidão preferir salvar um conhecido criminoso. Dos que o saudaram dias antes, nem sinal. Na hora sombria, amargou plena e profunda solidão, a beber vinagre quando estava sedento, a ver suas roupas serem sorteadas entre desconhecidos. Aos pés da cruz, apenas sua mãe e alguns raríssimos amigos.

Jesus Cristo não é caso isolado na história da humanidade. Antes e depois dele, oradores, filósofos, poetas, astrônomos, imperadores e modernos cientistas desabaram da glória ao subsolo. De Julio Cesar a Cícero; de Hipatia de Alexandria a Alan Turing; de Sócrates a Oscar Wilde.

É do temperamento coletivo a frivolidade. As multidões mudam de opinião ao sabor das circunstâncias. Hoje, herói aplaudido; amanhã pária, candidato ao repúdio público.

Em tempo de redes sociais, o fenômeno é ainda mais rápido. Instantâneo, por vezes. Tem-se a ilusão de ter muitos amigos, mas passam os modismos, os gostos mudam, os queridinhos de ontem cedem lugar aos novos e – já disse o poeta – a mão que afaga também apedreja. Ai de quem se apega.

Mais que isso. Nossas vidas, a virtual e a real, são ruidosas. Pouco permitem que desfrutemos de nossa própria companhia. Estamos sempre a nos reunir, festejar, visitar, numa sucessão de compromissos. Em todos os intervalos, celular à mão, inclusive na cama, antes de dormir. Ao acordar, lá está ele, bem ao lado, na cabeceira, com sua vertiginosa espiral de novidades e emoções. Curtir, comentar, reagir, replicar e começar tudo outra vez. As horas escorrem rápidas e nunca estamos sós.

Do turbilhão da rede emergimos cansados, consumidos por inquietudes novas, não raro com uma pedra no coração ou ainda mais conscientes de que estamos de fato sozinhos, que certas amizades (virtuais ou não) revelam-se distanciadas dos nossos sentimentos e convicções. Ao se desnudarem, demonstram a nossa crua solidão espiritual – e esta é um estado que raros suportam. É que farejamos o perigo embutido na solitude. Nesse terreno pantanoso, o olhar se volta para si mesmo, não há certeza da pisada ou do que há após o véu do mistério. Certamente há dourados sóis, mas também os segredos que habitam os subterrâneos do espírito. Exige destemor.

O saber estar consigo mesmo – arte algo esquecida em meio às modernidades tão sedutoras – é essencial quando se pensa em meditação e tranquilidade da alma. A propalada mente calma nada mais é do que adaptação às circunstâncias, autocontrole, resiliência. Ela não se curva ao desespero, mesmo em meio à adversidade e às lágrimas sentidas. Sabe que cólera e paixões desenfreadas são péssimas conselheiras. Importante não as deixar assumir o controle.

Alcançar este estado de graça é um árduo e longo caminho. Exige treinamento, perseverança, disposição. E, se havemos de trilhá-lo, que seja de imediato, mesmo que se esteja abatido.

Os mais sábios, entre nós, souberam apreciar a solidão e suas lições.

Sócrates morreu cercado de discípulos, mas, a rigor, estava só. Não havia ali quem estivesse em comunhão com a sua serenidade. Os discípulos e a família estavam aflitos e ele teve de lhes dar exemplos de fidelidade às próprias ideias. Suas horas finais foram usadas para demonstrar o valor de suas teses. Não queria choro ou descontrole. Bebeu a cicuta até a última gota, sem que a mão tremesse. Na hora final, pediu que lhe cobrissem o rosto. Queria a solidão de si mesmo. Não se consegue isso de uma hora para outra.

Na história narrada nos evangelhos ocorre exatamente o mesmo. O Jesus que morre é ainda o homem que ensina, perdoa e exemplifica, apesar do corpo que se finda entre dores. Uma de suas últimas frases é emblemática: Eli, Eli, lamá sabactani (Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?). Não é um pedido de ajuda, nem queixa. Estava apenas recitando antigo Salmo, o 22, que inicia com essa exata frase.

O poema de Davi fala de um homem desprezado, cujas vestes foram repartidas e as forças secaram. Um homem que morre sozinho e faz da finitude um instante de contemplação poética: “Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas.(…) Mas tu, Senhor, não te afastes de mim. Força minha, apressa-te em socorrer-me“.

Os instantes finais de Jesus Cristo são voltados inteiramente para si; a divindade e companhia que evoca estão nele mesmo. Ficaram para trás os amigos que o traíram e negaram, os que dormiram enquanto chorava. Acho notável que Cristo chore na solidão de um jardim, ouvido apenas pela natureza silenciosa. Chora por se sentir esmagado pelo que virá, incompreendido, abandonado – como todo mundo. Tão humano. Chega a pedir que seja afastado o cálice amargo que lhe é oferecido, mas logo o aceita, pois sabe da importância da experiência. No final, perdoa a todos, pois compreendia a alma humana, tão ignorante, mesquinha e volúvel. Ficaram para trás a política dos homens, as hipocrisias, as disputas por macro e micro poder. Nada disso importava no instante supremo. A ele bastava saber o que carregava no peito. É um modelo filosófico poderoso, que vai além de religiões. O que fez não é impossível para nenhum outro ser humano. Preparar-se para tal solidão pacificada é o desafio que hoje se impõe a todos nós.

Coragem, pois. Ao olhar no universo de si mesmo, pode-se descobrir galáxias e nebulosas, planetas que giram docemente, estrelas de alta magnitude. Nesse gesto de amor próprio, o homem aprende a estar bem consigo. A mão pousa gentilmente sobre o peito, afagando a solidão. Em paz.

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Ilustração: Cristo perante o sumo-sacerdote (detalhe). 1617. A obra de Gerrit van Honthorst está na galeria abaixo, no qual você encontra algumas das mais belas telas e afrescos sobre a entrada de Cristo em Jerusalém e sua solidão agoniada no Getsemani..

Após as pinturas está um vídeo com a ária Erbarme dich, mein Gott (Tem piedade, meu Deus), que pertence ao oratório A Paixão segundo Mateus BWV 244 (Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Evangelistam Matthaeum; em alemão: Matthäus-Passion), de Johann Sebastian Bach. A obra representa o sofrimento e a morte de Cristo segundo o Evangelho de Mateus. O libreto é de Picander (Christian Friedrich Henrici). 

Erbarme dich, mein Gott é um sublime canto que reflete a dor do apóstolo Pedro depois que ele nega Jesus em três ocasiões. Beleza dolorosa e profunda tristeza permeiam a música. O violinista israelense Yehudi Menuhin chamou o solo da ária de “a mais bela peça de música já escrita para violino”.

Erbarme dich, mein Gott, de Johann Sebastian Bach. Delphine Galou (contralto) e François-Marie Drieux (violino). Orquestra sinfônica Les Siècles, conduzida por François-Xavier Roth. Em seguida, Stabat Mater, de Pergolesi, conduzida por Nathalie Stutzmann, com Philippe Jaroussky (contratenor) e Emöke Barath, (soprano), gravada no Château de Fontainebleau, França em abril de 2014.

A Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach, apresentada pela primeira vez há trezentos anos.