Mas homens são homens, e por vezes o melhor pode errar (William Shakespeare, in Otelo)

A perfeição nos seduz. Brilha diante de nós como estrela distante, impossível de alcançar. E ainda assim a perseguimos sem descanso. Basta um descuido para que ela se infiltre, sob a forma de um desejo silencioso e voraz, e instale seu império de exigências, demandando sacrifícios e privações, espremendo o coração entre os dedos.

Ela nos espia, risonha, em imagens criadas por escrituras, artistas,  convenções, condicionamentos e agora, redes sociais. No limite do abstrato enevoado, cria paraísos na terra, ergue vozes angélicas, põe beleza do traço, revela a sublimidade da alma e a harmonia das formas. Entretanto, no instante seguinte, a luz clara do dia revela a concretude da nossa imperfeição em corpo e espírito. Choque, dor e inconformismo então nos alcançam.

É um momento delicado e exige cautela. A agonia da comparação com o que julgamos perfeito abre as portas do coração para que a inveja de dedos tortos despeje ali o seu veneno. Ou, pior, frustrados, somos tentados a repetir a frase imortal de Shakespeare: “Uma imperfeição me mostra outra, ensinando-me a detestar-me sem reservas”.

Pena que caiamos nessas armadilhas, pois a perfeição é desumana, bem notou Fernando Pessoa, autor da mais magnífica ode à imperfeição erigida em língua portuguesa: o “Poema em Linha Reta”. 

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?

Fernando Pessoa sempre me põe um sorriso no rosto. Nesse caso, de puro alívio. Seu poema, pleno de humanidade, de uma tal sinceridade e de um profundo autoexame, me comove e retira a carga posta sobre os meus ombros. Um poema que me liberta das impossíveis cobranças.  É minha redenção particular, meu lembrete constante das imperfeições que carrego e com as quais aprendi a caminhar sem deixá-las se tornarem meu senhor e meu chicote. Pessoa nos absolve. Devolve a todos nós a capacidade de ser pequeno, de tropeçar, de descer ao fundo enlameado de um poço e não se sentir como o único falível no vasto mundo. Depois dessa tomada de consciência é recomendável fugir à tentação da autoindulgência e trabalhar para se reerguer, agora experiente, pronto para o novo round que obrigatoriamente virá.

Tudo isso me ocorre enquanto penso nas histórias que a tradição cristã nos oferece sobre os discípulos de Jesus Cristo. A antiga narrativa pode ser aplicada aos nossos dias e à busca de dar sentido à jornada repleta de desafios. Observo nos textos o caráter dos amigos de Jesus – um conjunto de pessoas altamente falíveis, verdadeiras representações dos versos de Fernando Pessoa. Homens simples, com falhas morais diversas. Em várias ocasiões se mostram medrosos, impulsivos, inconstantes, interesseiros, ciumentos e egoístas.

Nos tempos tranquilos, enquanto houve multidões de seguidores e milagres, eles eram os orgulhosos amigos, os que disputavam a atenção dele e um lugar ao seu lado no Paraíso, os que juravam amá-lo; os que o seguiam por toda parte, encantados com os seus dons.

“Pedro, tu me amas?”, a pergunta, feita três vezes seguidas, recebeu firme resposta. “Sim, mestre, eu te amo”. Poucas horas depois, o mesmo Pedro soluçava, desconsolado: “Tem piedade de mim, meu Deus”. Havia abandonado o amado, negando sequer conhecê-lo. Três vezes igualmente.

No único instante em que seu mestre precisou de apoio e o pediu ostensivamente, todos os discípulos estavam ausentes. Sequer conseguiram ser-lhe companhia na hora de angústia. Seguiu sozinho, bebendo cada gota do cálice de amarguras.

Parece-me que ao escolher esses homens tão imperfeitos, Jesus Cristo reforçou a sua opção preferencial pelo ser humano sem retoques. Humanos falíveis. Não só adúlteras, prostitutas, publicanos e  samaritanos foram acolhidos sem preconceitos. Os postos de amigos mais próximos foram ocupados por homens rudes e um cobrador de impostos (que desde a Antiguidade permanece como uma dos mais impopulares ocupações). Para quase todos estes imperfeitos, o paraíso é uma possibilidade, talvez uma conquista futura, depois que a forja da vida os submeter ao fogo da experiência.

A exceção foi Judas. Um tremendo erro de cálculo lhe custou a vida. Por ele sinto uma genuína compaixão. Poderia ser personagem de uma das tragédias gregas. O texto dos Evangelhos o mostra em seu arrependimento, na tentativa desesperada de devolver as moedas e, depois, no suicídio. Incapaz de lidar com a enormidade da culpa a lhe pesar consciência –  a morte de um amigo ao preço de míseros trinta dinheiros.

Para os demais discípulos, foi necessária a queda moral para que pudessem se enxergar na crueza das suas imperfeições e delas fazer escada para uma conquista posterior. O arrependimento pela covardia e pela desatenção lhes despertou a consciência adormecida. Só então, narram os Evangelhos, ainda sob o impacto das dores morais, reuniram forças para assumir um papel mais maduro. O futuro vai encontrá-los inundados de coragem, passando por perseguições, tortura e morte bastante semelhantes à do próprio Jesus Cristo. E desta vez não fogem, dormem ou se acovardam.

No roteiro de emoções da prisão, julgamento e morte de Jesus, foi justamente a imperfeição que teve papel central. Ao apresentá-los sem idealizações, espiritualmente desnudos, os evangelistas endereçam ao homem comum, com sua bagagem de quedas, a mensagem de perseverança na construção de uma vida mais ética. O texto diz que esta é possível a todos, mesmo os mais vis e mesquinhos. Reforçam que a imperfeição não é limitante: é um alerta e um convite à vigilância sobre si mesmo. É o oposto das atitudes que em geral temos: a de buscar uma perfeição de aparências, algo fútil e exibido, superficial e de fins puramente egóicos.

Não é de hoje que os humanos cultivam esse despudor de apresentar a si e aos seus como exemplos máximos de felicidade, moralidade, genialidade, bondade, beleza e – agora na new age – de uma elevação espiritual capaz de humilhar o Buda.

Com a entrada em cena do vasto mundo das redes sociais, as telas dos celulares trouxeram para dentro das nossas retinas cansadas uma gente mais que perfeita, com pele de filtro de Instagram, viagens espetaculares, dentes branquíssimos e ares de ladies e gentlemen fitando a patuleia como se visse bicho exótico. A patuleia, no caso, somos eu e você, aquele pessoal que tem rugas, manchas na pele, barriguinha de pochete, dentes tortos e celulite; o conjunto que trabalha de sol a sol e luta contra a preguiça, o cansaço, a indisciplina, a procrastinação, o desânimo, a impaciência, a tristeza, a raiva e tudo o mais que compõe o conjunto de armadilhas estrategicamente colocadas na mente pelo dragão-de-fogo escondido sob a nossa pele.

Conviver com tudo isso exige força moral. Para não se comparar, para escapar às frustrações e à inveja. No universo virtual cada vez mais dominado pela artificialidade das relações e das aparências, o poema de Pessoa soa contundente e necessário. E ainda há quem diga, tolamente, que os poetas são inúteis.

Há muito fiz as pazes comigo mesma. Sinto uma grande tranquilidade ao me reconhecer imperfeita. Não que a imperfeição me dê algum tipo de alegria ou eu a cultive. Dela eu não me orgulho. As imperfeições físicas pouco me incomodam. Mas ponho completa atenção nas falhas morais. Não as deixo me deprimirem ou me engolirem. Faço questão de vê-las sem disfarces, na intimidade do meu autoexame diário. Vigio-as atentamente, como quem está trancado numa sala com um escorpião: é necessário não o perder de vista. Consciente do perigo, mas em paz, vivendo o que me é possível fazer, reiniciando a luta interna a cada manhã, costurando as feridas abertas, pondo bandagens para estancar o sangue que me escapa das veias. É confortador se sentir humano, sem pôr sobre si mesmo a espada afiada da mais atroz exigência.

Hoje, caminho de mãos dadas comigo, consciente do que devo aprimorar; munida de paciência e compreensão. Se eu não tiver essa paciência, quem a terá?

A imperfeição tornou-se o meu motor de aprimoramento pessoal. Minha prioridade na vida é me examinar e aceitar as falhas, os arranhões e tropeços. Ao lidar com eles, aprendo, experimento a lição da humildade e emerjo simultaneamente mais forte e preparada para os desafios da existência.

Sou humana; a perfeição, desumana.

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(Texto: Sonia Zaghetto. Ilustração: Christina’s World (detalhe), de Andrew Wyeth.)

Abaixo estão um texto sobre o quadro Christina’s World, do pintor norte-americano Andrew Wyeth, e uma galeria de fotografias com detalhes da pintura; o Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa; vídeo e texto do Professor Alexandre Romariz sobre as Lamentações de Jeremias, musicadas pelo compositor elizabetano inglês Thomas Tallis, uma galeria de pinturas clássicas relacionadas à Quinta-Feira da Paixão. E, ao final, vídeo completo da Paixão segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach.

Christina’s World e a imperfeição física

Christina’s World é a mais famosa pintura de Andrew Wyeth. Pintada em 1948, retrata Anna Christina Olson (3 de maio de 1893 – 27 de janeiro de 1968), que sofria de um distúrbio muscular degenerativo que lhe comprometia os movimentos e paralisou a parte inferior do seu corpo.

A tela é impactante. Os detalhes pintados por Wyeth são primorosos, cada folha de grama meticulosamente pintada oscila ao vento no horizonte vastíssimo do mundo. Christina se inclina em direção à sua casa. A princípio, ela parece apenas estar repousando sobre a grama, mas ao olhar atento a pintura revela novos detalhes – estes perturbadores. Observamos o corpo em plena luta com suas imperfeições. Os dedos acinzentados, os cabelos levemente desgrenhados e com fios grisalhos, o braço descarnado, as pernas semimortas. Seu rosto não aparece. Está voltado para outra direção: a casa e os objetivos que traçou para si e que são maiores que sua deficiência física.

Em certa ocasião, o pintor afirmou que desejava “fazer justiça à extraordinária conquista de uma vida que a maioria das pessoas consideraria sem esperança. Se de alguma forma eu conseguir na pintura fazer o espectador sentir que seu mundo pode ser limitado fisicamente, mas de forma alguma espiritualmente, então eu consegui o que me propus a fazer.”

Sem poder andar desde os 30 anos de idade, Christina tinha que se arrastar pela sua propriedade a fim de escolher verduras e hortaliças no jardim. Ela era contra o uso de cadeira de rodas. Preferia rastejar. Wyeth se inspirou para criar a pintura quando ela rastejava pelo campo enquanto ele a observava de uma janela da casa. O artista tinha uma residência de verão na região e era amigo dos Olson. Christina foi a inspiração e o tema da pintura, mas não o modelo principal. A esposa de Wyeth, Betsy, posou para o artista. Christina Olson tinha 55 anos na época em que Wyeth pintou a tela.

Christina’s World foi exibido pela primeira vez em 1948, na Macbeth Gallery em Nova York. Recebeu pouca atenção da crítica , mas Alfred Barr, fundador do Museu de Arte Moderna (MoMA), comprou a pintura por US$ 1.800 (equivalente a aproximadamente US$ 16 mil dólares ). Gradualmente, a obra cresceu em popularidade e hoje é considerada uma das grandes peças da pintura americana.

O artista fez outras pinturas de Christina e seu irmão. Os Olson e Wyeth mantiveram um relacionamento extremamente próximo ao longo de suas vidas. Wyeth enriqueceu e de maneira recorrente presenteava a família Olson, pois Christina recusava-se firmemente a receber qualquer dinheiro por ter inspirado os quadros. Um ano antes de morrer, o pintor disse ao L.A. Times que queria ser enterrado com Olson. “Eu quero estar com Christina”, disse.

A casa em Cushing, Maine, onde Wyeth estava quando viu a cena que o inspirou a fazer a pintura, continua a existir. Conhecida como Olson House, ela está no Registro Nacional de Lugares Históricos dos Estados Unidos, o que a torna um marco histórico nacional. É aberta ao público, operada pelo Farnsworth Art Museum e foi restaurada para combinar com a aparência na pintura.

Veja abaixo a galeria de fotografias detalhadas do quadro. A primeira imagem (em tons mais esverdeados) é a que consta da Wikipedia. As demais foram feitas por Sonia Zaghetto, em maio de 2021, no MoMA, em Nova York.

POEMA EM LINHA RECTA

Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Lamentações de Jeremias

Alexandre Romariz

No serviço conhecido como Tenebrae há uma série de leituras de textos sagrados enquanto as luzes do altar são apagadas. Para a leitura da Quinta-Feira Santa, o texto costuma ser as Lamentações de Jeremias. Embora o texto seja do Antigo Testamento e se refira ao sofrimento judeu sob o jugo babilônico, é usado metaforicamente significando o lamento da Paixão de Cristo.

Abaixo você ouve o Primeiro Lamento musicado pelo compositor elizabetano inglês Thomas Tallis. É interpretado pelo The Queen’s Six, um coro criado em 2008, no 450º aniversário da ascensão da rainha Elizabeth I. Com sede no Castelo de Windsor, os membros do The Queen’s Six fazem parte dos Lay Clerks of St George’s Chapel. O Coro da Capela, composto por meninos e cantores adultos profissionais, canta em serviços semanais e em solenidades particulares e estatais, muitas vezes perante a Família Real.

Para ler o texto do Livro de Jeremias, clique aqui.

Eis a letra em latim

Incipit Lamentatio Ieremiae Prophetae

1:1 ALEPH. Quomodo sedet sola civitas plena populo! Facta est quasi vidua domina gentium; princeps provinciarum facta est sub tributo.

1:2 BETH. Plorans ploravit in nocte, et lacrimæ ejus in maxillis ejus: non est qui consoletur eam, ex omnibus caris ejus; omnes amici ejus spreverunt eam, et facti sunt ei inimici. Ierusalem, convertere ad Dominum Deum tuum.

Pinturas, esculturas e afrescos sobre a Última Ceia e a traição de Judas

A Paixão segundo São Mateus – Johann Sebastian Bach