Mesmo os mais queridos, os que eu mais amei,

São estranhos – mais estranhos que os demais.

(John Clare – I Am)

Acima dele, já nada havia , senão o céu — um céu alto, não claro, mesmo assim incomensuravelmente alto, com nuvens cinzentas que deslizavam tranquilas. “Como está tranquilo, calmo e solene, muito diferente de quando eu corria”, pensou o príncipe Andrei. “Muito diferente de quando nós corríamos, gritávamos, lutávamos; (…) Como é que antes eu não via esse céu alto? E como estou feliz, eu, que afinal descobri esse céu. Sim! Tudo é vazio, tudo é ilusão, exceto o céu infinito. Nada existe, nada, exceto ele. Mas nem isso existe, nada existe, exceto o silêncio, a tranquilidade.

(Liev Tolstoi. Guerra e Paz)

A deusa de róseos dedos põe cores no céu da Califórnia enquanto leio “I am” (Eu sou), de John Clare. Tristeza, solidão e o desejo de encontrar a paz são os temas desse rico poema, talvez o mais famoso de Clare, um romântico inglês do século dezenove que escreveu seus versos enquanto estava internado em um hospital psiquiátrico. As palavras pungentes me comovem e eu me deixo conduzir. Aprendi recentemente uma nova economia, a das lágrimas: entrego-as tão-somente como tributo aos que me iluminam.  O mal que me fazem ou as dores do corpo não merecem receber a emoção líquida que habita os meus olhos. Evito ao máximo desperdiçá-la com autopiedade ou rancor.

Tantas coisas me ocorrem diante da beleza agoniada dos versos escritos há mais de 150 anos. “Eu sou – mas o que eu sou ninguém sabe” e “mesmo os mais queridos, os que eu mais amei, são estranhos – mais estranhos que os demais” soam familiares a tantos humanos que anseiam por ser compreendidos. Conhecer o vasto e tortuoso território do coração alheio é ilusão que a realidade e a maturidade retiram. Não é apenas o poeta deprimido que se sente um estranho para os amados. Cá estamos nós todos carregando a solidão do ser e, à medida que envelhecemos, cada vez mais conscientes de que a riqueza dos fios entrelaçados que compõem o nosso espírito é captada superficialmente, como um novelo de muitas linhas que, visto de longe, permite identificar apenas um ajuntamento de cores e o formato redondo.

“Eu sou o autoconsumidor das minhas aflições” é um verso que gosto demasiado. Diz tanto sobre o hábito de cultivar e aprofundar as dores. Clare transita pelas flutuações da mente, expondo o tormento das sombras que surgem e desaparecem: agonias delirantes e sufocadas do que chamamos amor – esse tão ansiado sentimento que, mal se assenta à nossa mesa com seu cortejo de plumas e canções, não raro é convertido em chicote e espada. Prova máxima da nossa vocação para o paradoxo, o auto boicote ou a estupidez.

Ponho os versos mais sofridos de John Clare na conta da depressão do poeta. Assim como van Gogh e Virginia Woolf, Clare batalhava contra a própria mente. Transpôs tudo para versos impactantes (“no mar vivo dos sonhos despertos não há sentido da vida ou alegrias”) e depositou suas esperanças em um futuro pós-morte, em que adormeceria docemente, como na infância, aconchegado nos braços de seu Deus, em cenários tecidos de sonho e jamais tocados pelas paixões humanas. Um lugar em que se deitaria, imperturbável, sentindo a grama abaixo do corpo, e tendo acima a abóbada do céu. Tal imagem me remete a outra cena criada por um escritor brilhante, Liev Tolstoi, em “Guerra e Paz”: a do príncipe Andrei caído no campo de batalha, sereno, contemplando o céu azul, pondo a existência em perspectiva, focado no que realmente importa.

Retiro da ordem e subverto o sentido de um verso para encerrar este texto: “E, ainda assim, eu sou e vivo”. Afasto as tristezas do poeta e celebro a minha própria vida, transbordando de gratidão por esse tempo curto em que experimento a alegria única de existir.

Eu sou. Eu vivo. Nas minhas veias ainda flui o sangue, meu rosto se ruboriza de prazer ou de vergonha, carrego experiências únicas. Eu sou um mundo semidesconhecido, um planeta inteiro de sonhos e tropeços, que gira como bailarino em uma galáxia imensa. Ao meu redor há tantos vizinhos. Neles percebo a vida pontuada por delícias, aflições e espantos.  Não disfarço o encantamento. Nada pode ser mais fascinante que estar aqui, agora, testemunhando o teatro cósmico, pleno de som, fúria e flertes com a felicidade.

Eu sou

John Clare

Eu sou – mas o que eu sou ninguém se importa ou sabe;

Meus amigos me abandonam como uma memória perdida:

Eu sou o autoconsumidor das minhas aflições—

Elas surgem e desaparecem em hostes esquecidas,

Como sombras nas agonias delirantes e sufocadas do amor

E ainda assim eu sou e vivo – como vapores lançados

no nada de escárnio e ruído,

No mar vivo dos sonhos despertos,

Onde não há sentido da vida ou alegrias,

Apenas o vasto naufrágio das estimas da minha vida;

Mesmo os mais queridos, os que eu mais amei,

São estranhos – mais estranhos que os demais.

Anseio por cenários onde o homem nunca pisou

Um lugar onde a mulher nunca sorriu ou chorou

Para habitar com meu Criador, Deus,

E dormir como, na infância, eu dormia docemente,

Sereno e imperturbável em meu descanso

A grama abaixo; acima, o céu abobadado.

I am

I am—yet what I am none cares or knows;

My friends forsake me like a memory lost:

I am the self-consumer of my woes—

They rise and vanish in oblivious host,

Like shadows in love’s frenzied stifled throes

And yet I am, and live—like vapours tossed

Into the nothingness of scorn and noise,

Into the living sea of waking dreams,

Where there is neither sense of life or joys,

But the vast shipwreck of my life’s esteems;

Even the dearest that I loved the best

Are strange—nay, rather, stranger than the rest.

I long for scenes where man hath never trod

A place where woman never smiled or wept

There to abide with my Creator, God,

And sleep as I in childhood sweetly slept,

Untroubling and untroubled where I lie

The grass below—above the vaulted sky.