Logo que o juiz se assentar, tudo o que está oculto aparecerá: nada ficará impune. O que eu, pobrezinho, poderei dizer? (Mozart, Requiem em ré menor (K. 626). Tuba Mirum.

“Quando o anjo da morte lhe cobrir com seu sudário, sua vida não terá sentido se você não tiver feito algum bem na terra”. Essa nota – que o pintor francês William-Adolphe Bouguereau anexou ao esboço de sua pintura Egalité devant la mort (Igualdade perante a morte) em 1848 – foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando comecei a elaborar meu testamento esta semana.

Fazer um testamento torna concreta a própria morte. Estou tomando providências para quando não existir mais, digo baixinho. Arrumo a casa calmamente. Coloco os papéis em ordem, tentando não deixar coisas demais para os outros resolverem. Ao mesmo tempo, contemplo os acontecimentos da minha vida sem auto indulgência, perdoando a mim e aos outros.

O mundo seguirá como sempre esteve, as estações se sucederão, meus filhos tomarão decisões; novas canções, filmes, livros e poemas chegarão ao mundo. Eu não saberei.

Desde cedo tive uma serena relação com a minha morte. Nunca a temi nem a desejei; embora esteja sempre pronta para ela. Sei que está a me espiar, paciente, ecoando as batidas do meu coração, à espera do instante em que tudo será silêncio.

Naquele dia, meu rosto será máscara de cera; meus olhos fechados para a luz; os ouvidos surdos; as mãos imóveis. Compartilharei o mesmo destino de tudo o que vive na Terra. Gosto de não ser exceção. Devolverei a poeira das estrelas que me formou o corpo. Há beleza em voltar à Natureza, dissolvendo-se, nutrindo a vida microscópica, fazendo parte de um grande conjunto que se consome e renasce em outras formas.

O capítulo seguinte é um mistério que atravessa os milênios. Não tenho a pretensão de desvendá-lo, mas valho-me de antigo mito, algo poético, para chegar ao ponto que desejo.

No dia em que o hálito da vida cessar, talvez alguém chegue. Nada dirá. Apenas me tomará pela mão e me conduzirá por caminhos subterrâneos. Ela estará de pé, com uma ankh entre os dedos. Estenderá a mão em direção aos cabelos e dali vai retirar uma pena. A pluma flutuará até um dos pratos da balança em um voo hipnótico. No outro prato estará o meu coração. Nu, desamparado.

Será ele mais leve que a pena?

Diante do espelho frio daqueles olhos, poderei dizer que nunca senti o inútil remorso, não propaguei falsidades, não cultivei o ódio?

A verdade me fita. É uma deusa severa. Diante dela terei de prestar contas de arrogância, violência, conflitos. Conseguirei dizer que não agi ou julguei com rigor injustificado? Afirmarei com segurança que não fiz o mal?

Minha voz não poderá tremer quando disser: eu não me profanei.

Talvez pelo subterrâneo ecoem notas de um réquiem e eu me pergunte se, afinal, tudo o que experimentei valeu o peso que trouxe ao coração.

O que desejarei naquele instante? Que reste de mim o rastro de algum bem que fiz em meio a esse conjunto de imperfeições. Um pequeno gesto de amor que viverá por breve tempo na memória de alguém e fará tudo valer a pena. Faz parte do meu ritual de devolução à Terra deixar a herança de algo bom para os outros inquilinos

Agora, enquanto ainda respiro, olho para o céu. Sei que muito além das nuvens há uma nebulosa, Hélix, a hélice. Quando os telescópios gigantes a capturam e os cientistas colorem as imagens, ela parece um olho humano.

Os que creem dizem que é um olhar divino. Eu não sei. Prefiro pensar que é minha consciência a me dizer que não devo adiar a construção da alegria e da tranquilidade da alma.

Quem sabe aquela íris feita de gás, estrelas e mundos que giram no concerto cósmico seja um recado. Uma secreta mensagem sobre a brevidade da vida e sobre o que é de fato importante.

Texto: Sonia Zaghetto

Imagem: William-Adolphe Bouguereau. Egalité devant la mort (Igualdade perante a morte). 1848. Museu D’Orsay. Paris, França.

Referências no texto

O texto traz referências poéticas à cultura do Antigo Egito.

Ankh na tumba de Tutankhamon

Ankh ou a chave da vida é um antigo símbolo hieroglífico usado na arte e escrita egípcias para representar a palavra “vida”. Por extensão, tornou-se um símbolo da própria existência. Acreditavam os egípcios que a vida era uma força que circulava pelo mundo. Os seres vivos individuais, incluindo os humanos, eram manifestações dessa força e estavam fundamentalmente ligados a ela. As origens da ankh não são conhecidas. Comumente, a ankh aparece retratada nas mãos de antigas divindades egípcias, ou sendo oferecida por elas ao faraó, para representar seu poder de sustentar a vida e reviver as almas humanas após a morte

Ma’at (Maat) era a deusa da verdade, da justiça, da sabedoria, que regia as estrelas, a lei, ética, ordem, harmonia, estações do ano e equilíbrio cósmico. Representada como uma jovem mulher com uma pluma entre os cabelos, simbolizava o princípio ético-moral que todos os cidadãos egípcios deveriam seguir ao longo de suas vidas. Esperava-se que os egípcios agissem com honra em questões que envolvessem família, comunidade, nação, meio ambiente e os deuses. Acreditava-se que no Duat, o mundo dos mortos egípcio, os corações dos falecidos seriam pesados contra uma única pluma de Maat. Por isso os corações (considerados parte da alma) eram deixados nas múmias egípcias enquanto outros órgãos eram removidos. Se o coração fosse mais leve ou igual em peso à pluma de Maat, o falecido levara uma vida virtuosa e iria para Aaru. Um coração indigno era devorado pela deusa Ammit e seu dono condenado a permanecer no Duat. Enquanto o coração era pesado, o falecido recitava as 42 Confissões Negativas diante de Maat. Note a enorme semelhança com as Confissões de Maat e os Dez Mandamentos, apresentados por Moisés, que vivera na Corte egípcia. Entre as 42 Confissões Negativas, traduzidas pelo egiptólogo Sir Ernest Alfred Thompson Wallis Bud, estão: Eu não cometi pecado; Não cometi roubo com violência; Eu não roubei; Eu não matei homens ou mulheres; Não roubei comida; Eu não roubei dos deuses; Não contei mentiras; Não fechei meus ouvidos à verdade; Não cometi adultério; Não fiz ninguém chorar; Não agredi ninguém; Não sou enganador; Não roubei a terra de ninguém; Não acusei ninguém falsamente; Não fiquei com raiva sem motivo; Não seduzi a mulher de ninguém; Não me contaminei; Não aterrorizei ninguém; Não desobedeci à Lei; Eu não amaldiçoei os deuses; Não me comportei com violência; Não causei perturbação da paz; Não agi precipitadamente ou sem pensar; Não ultrapassei meus limites de preocupação; Não exagerei em minhas palavras ao falar; Eu não fiz o mal; Não amaldiçoei ninguém em pensamento, palavra ou ação; Não me coloquei em um pedestal; Não roubei ou desrespeitei os mortos; Não agi com insolência

Bach é o paraíso

Abaixo você encontra uma ária de Johann Sebastian Bach, Ich habe genug (Eu tenho o suficiente), uma peça delicada que fala do desejo de escapar dos sofrimentos do mundo e viver uma vida de plenitude junto à divindade. A letra da ária é de autoria de Christoph Birkmann, estudante da Universidade de Leipzig na década de 1720.