Sonia Zaghetto

Entro no quarto como se pisasse em território sagrado. Da varanda vem uma brisa fresca e os verdes da primavera. Neste lugar, ele morreu, penso, enquanto a emoção se faz líquida nos meus olhos.
Minutos antes eu caminhara por uma adorável estradinha cercada de árvores. Pássaros cantavam e meu coração feliz respondia. Finalmente iria visitar a casa dele. Há anos eu esperava por isso.
A construção é uma datcha, a casa de campo russa, e fica em Bougival, a quinze minutos de Versalhes. Por fora, é bonita, mas simples. O interior é a tradução de uma alma de artista. As enormes janelas de vidro trazem a natureza para dentro da casa. A cor das árvores contrasta com o móveis de madeira e constrói um ambiente de sonho. Hoje é um museu.
Catherine me recebe com gentileza. “Você pode me ajudar a abrir a casa?” Concordo com um aceno de cabeça, um nó se formando na garganta. Vou mesmo abrir a casa dele? Toco com imenso carinho os ferrolhos da porta e a madeira das janelas, esses detalhes que a ninguém mais importam.
Catherine então me pede ajudá-la a abrir o piano. Tem quase duzentos anos. Passo os dedos pelas teclas, profundamente emocionada. Um piano lindo, com a madeira toda trabalhada artesanalmente. Sobre ele, uma partitura. Uma canção de amor. A letra é dele; a música é da mulher que ele amou com devoção. Seu único amor.
Anos atrás, escrevi um texto imaginando como ela se sentiu, naquela mesma casa, no dia em que ele deixou a vida.
Olho tudo, leio tudo. Percebo que estou absorvendo a casa dele. Pelos poros, pelos olhos e ouvidos. Eu a trago para dentro de mim.
No segundo andar está o escritório, da janela se vê um pinheiro. Retratos de Pauline Viardot, canetas, papéis e livros. Quase posso vê-lo escrevendo naquele lugar encantado. Aperto o interruptor e deixo apenas a luz natural no ambiente.
Deixei por último o quarto. A decoração é uma réplica perfeita do original. Graças a um desenho em bico de pena (que está na parede) puderam mandar fazer o pequeno canapé, a cama com dossel e até o papel de parede. Encosto a cabeça na cornija da lareira e olho demoradamente para as mesmas árvores que ele viu. Adormeço por alguns instantes pensando em sua generosidade para com todos, em seu talento para ler o espírito humano, nos seus inumeráveis gestos de amor. E uma enorme felicidade me toma ao acordar. Na realidade, o sentimento é de gratidão. Por esse homem tão belo ter existido neste mundo. Somos uns privilegiados por podermos desfrutar da herança que nos legou – mais preciosa que todas as riquezas materiais. Ali está ela, toda tecida de palavras eternizadas em páginas que revelam os abismos e as alturas a que pode chegar o espírito humano. Ele nada julga. Sua escrita é uma câmera que registra nossa grandeza e miséria.
Só então me dei conta que também me cabem as palavras que ele escreveu para a mulher amada: “Quando eu não mais existir. Quando tudo o que fui tiver se convertido em pó, (…) fecha teus olhos e estende tuas mãos ao teu ausente amigo. É um conforto para mim, agora, pensar que um leve toque então alcançará as tuas mãos”.
Inspiro devagar, fecho os olhos, estendo as mãos e imagino que por alguns segundos o véu das sombras se afastou e meus dedos trêmulos tocam os de Ivan Turgueniev.

Obrigada, sussurro.

(Texto escrito em homenagem aos 140 anos da morte de Ivan Turgueniev e aos quarenta anos de inauguração do Musée Européen Ivan Tourguéniev, localizado na rue Yvan Tourgueneff 16, em Bougival, França. Visitei o Museu, a antiga datcha de Tourgueniev, na primavera de 2023).

140 anos da morte de Ivan Turgueniev

O escritor russo Ivan Turgueniev morreu no dia 3 de setembro de 1883, em Bougival, França. No final dos anos 1870, Turgueniev construiu uma datcha em Bougival, no mesmo terreno da mansão que ele havia doado ao casal Pauline e Louis Viardot. Turgueniev amou Pauline durante toda a sua vida.

No começo da década de 1880, o escritor ficou gravemente doente e foi submetido a uma cirurgia para retirada de um tumor maligno agressivo (lipossarcoma), mas já havia metástase na parte superior da medula espinhal. Retornou a Bougival, em convalescença. Lá, ditou a Pauline Viardot o texto Um incêndio no mar, no qual antecipou os eventos da revolução de 1917 na Rússia.

No final do outono, os Viardots voltaram a Paris; Turgueniev permaneceu sozinho em Bougival. Esta solidão de algumas semanas foi razão de queixas dos russos sobre os seus amigos franceses, mas ele protestou vigorosamente quando lhe insinuaram que estaria melhor na Rússia. “Ainda estou vivo”, escreveu ele, “e se for viver para não poder me mover ou ficar de pé… É assim que vivem as ostras! E ainda tenho distrações que elas não têm”. Seu trabalho criativo não parava. A um dos seus visitantes, a quem relatou os sonhos das suas noites dolorosas, assegurou que poderiam ter-se tornado novos poemas em prosa. Até o fim manteve a capacidade de sair das preocupações pessoais e buscar o bem coletivo. Foi em seu leito de morte que escreveu a Liev Tolstói exortando-o a não trair a Rússia renunciando à literatura. Tolstoi – que vivia a sua fase mística, era considerado uma espécie de guru e havia parado de escrever ficção – aparentemente se sensibilizou. Depois da morte de Turgueniev escreveu A Morte de Ivan Ilitch e A Sonata de Kreutzer. Também em seu leito de morte Ivan Turgueniev dirigiu aos seus compatriotas palavras que resumiam a sua existência: “Vivam e amem os outros como eu sempre os amei”.

Estas são as suas últimas palavras; as que disse delirando não são importantes. Nos últimos dias, sofreu dores excruciantes que o fizeram implorar para que o deixassem se suicidar.

Pauline Viardot relatou a morte do amigo. Disse que ele perdeu a consciência dois dias antes. “Ele não sofria mais. Sua vida se extinguiu lentamente, e, depois de duas convulsões, ele deu seu último suspiro. Estávamos todos ao seu lado. Ele se tornou tão bonito quanto antes. No primeiro dia após a morte ainda apresentava uma ruga profunda entre as sobrancelhas, formada sob a influência das convulsões. No segundo dia, sua habitual expressão de bondade reapareceu em seu rosto. Seria de se esperar vê-lo sorrir”.
Três dias depois, seu corpo foi escoltado à Gare de l’Est pela maioria dos russos da colônia parisiense e por alguns franceses, incluindo About e Renan, que se despediram em nome da França e de seus escritores. Em São Petersburgo, quatro dias depois, sua previsão a Polonsky se tornou realidade. “Espere um pouco enquanto morro, você verá como serei tratado!”. Milhares de pessoas o aguardavam. Seu funeral foi um triunfo como não se via desde os tempos distantes de Pushkin. Duzentas e oitenta e cinco delegações e uma enorme multidão acompanharam o cortejo ao cemitério de Volkovo, em São Petersburgo. Turgueniev foi sepultado em 9 de outubro de 1883, próximo ao túmulo de seu grande amigo, o crítico Belinski, conforme desejo do escritor.

Para ler mais artigos de Sonia Zaghetto sobre a vida de Ivan Turgueniev e Pauline Viardot, clique nos links abaixo:

Como eram lindas e frescas as rosas (sobre o relacionamento de Turgueniev e Pauline Viardot)

Vida e obra de Ivan Turgueniev

Galeria de fotos da datcha de Turgueniev em Bougival. Arquivo Sonia Zaghetto (todos os direitos reservados)